Como Charles Bukowski, ele mostra uma desilusão alojada
na alma de seus personagens: tudo o que vier, será aceito
A novela Nervus Sympathicus, do prudentino Nivaldo Gonçalves rompe os
rígidos limites entre os gêneros clássicos; sua linguagem chega a ser
despojada, coloquial, numa ruptura com o academismo. Nervus é uma narração em terceira pessoa. E, nesse ponto,
gostaríamos de chamar a sua atenção para um detalhe: Aparentemente estamos
diante de um narrador impessoal, onipresente, onisciente, que nos reproduz
falas e pensamentos dos personagens, que nos decifra sensações e sentimentos;
entretanto, em várias passagens nos deparamos com o narrador falando em
primeira pessoa, emitindo juízo de valor sobre diferentes facetas da realidade
do interior paulista e do Brasil (ganância, ambição desmedida, tradição, preconceito, etc.).
Evidentemente, quem nos fala não é
um narrador impessoal; em várias passagens, ele se despe e podemos ver,
nitidamente, a face de Nivaldo Gonçalves. O escritor não repousa todas as suas
esperanças de um futuro melhor. O personagem vive apenas o momento, o agora, e
o que menos cresce ao longo da narrativa. Estático, ele não se modifica, mas
rompe com as estruturas arcaicas da sociedade. A decisão do personagem nos
últimos parágrafos da novela. Qual a sua parcela de culpa? E a de seus pais? Ou
o personagem é uma vítima, coitadinho, estava escrito nas estrelas e nada pode
ser feito para reverter esse quadro? Essas e tantas outras interrogações ficam
borbulhando dentro da cabeça.
O personagem busca a sua identidade
nas cidades: não é seu passado que ele deseja restaurar, mas aposta piamente
que a metrópole lhe despertará a veia artística, e ainda crê que possa se
encontrar por lá. A maturidade do alterego de Gonçalves está mais para certo
cansaço existencial do que para os dilemas de personalidade típicos da
adolescência. Suas crises de angústia até ocorrem, porém não duram muito,
varridas para debaixo da cama. Seu alterego está mais para Henry Chinasky, como
Charles Bukowski, ele mostra uma desilusão alojada na alma de seus personagens:
tudo o que vier, será aceito. O personagem central não é completamente
partidário da Postura do Homem Gélido (do tipo “tanto faz”), mas tem seus
momentos à la velho Buk — de certo modo, o alterego de Nivaldo Gonçalves também
está nas brechas do sistema.
Além das condições econômica, social
e familiar o escritor adiciona na composição da novela os ingredientes, uma
escrita de figurino literário misto quente, de Charles Bukowski, Henry Miller,
William Burroughs, Roberto Piva, Paulo Leminski, Ferréz, Plínio Marcos e a gibizada
toda, de Will Eisner, Moebius, Lourenço Mutarelli, Marcatti, Milo Manara a
Robert Crumb. Uma história mais para um “Walk
on The Wild Side”, do Lou Reed do que “Une
Saison en Enfer”, de Jean Arthur Rimbaud. Descobrir qual parte da estrutura
de Nervus deve às influências de John
Fante, Marcia Denser, João Antônio, Luiz Vilela, é assunto para estudiosos.
Melhor é curtir esse estilista da prosa meio dark, meio rock’n’roll e
se entregar ao ócio e ao prazer da leitura.
O autor formaliza seu próprio modo
descuidado de compor, indiferente às consequências dos cacófatos e solecismos,
uma crítica firmada como desafio às correntes oficiais. É um escritor que se
caracteriza por fotografar tipos: burgueses, ligados à cidade, e populares,
provenientes dos subúrbios. Os mesmos perambulam pelas ruas das cidades, a
exemplo de São Paulo, Curitiba, no Paraná, e Presidente Prudente, interior de
São Paulo, observado o Brasil de hoje.
Se lugar fixo, sem tempo fixo, o
personagem principal aproxima-se da tradição picaresca: ele precisa estar em
permanente movimento para sobreviver, seja em busca de melhores condições de
subsistência, seja em fuga dos malandros. Assim, é um movimento espacial de que
Nervus Sympathicus nos dá o melhor
exemplo, mas é também um movimento temporal, o que elas realizam, nutrindo-se,
nos piores momentos, da ingestão de bebidas, de energéticos, de drogas e do
entretenimento nas mesas dos barzinhos dos guetos. A sobrevivência, por outro
lado, exige-lhe tensão e atenção constantes. As coisas cada vez mais acontecem
sem sua interferência. Os personagens sentem a vida passar, mas não podem
interferir. E nesta impossibilidade, surge a única opção: a autodestruição.
Em nível da escrita, pode-se
verificar com certa facilidade toda esta situação. Agora, tento evidenciar os
elementos caracterizadores da literatura de Nivaldo Gonçalves. Tematicamente,
encontramos a ausência de uma participação efetiva e de uma integração mais
profunda dos personagens nas chamadas instituições sociais. As condições de
habitação são medianas, a organização social vai pouco além da família nuclear.
Aliás, verifica-se que, por vezes, a própria família do personagem principal é
neutra, o que traz uma sensação vaga e de vazio.
A compensação não chega através de
novas amizades, mas em relacionamentos líquidos, fúteis ou proteções. A
predisposição ao autoritarismo, em razão ao jogo da vida ou da lei da selva,
uma característica do ambiente essencialmente calculista e severo, são uma
constante e assim, sentimentos como o de solidão, medo e necessidade de
autovalimento e permanente desconfiança alternam-se nos personagens que
apresentam fortes sentimentos de marginalidade, de desespero e de dependência,
unindo-se em pequenas gangs, não ultrapassando, contudo, sua própria
desconfiança. O discurso é de autoafirmação, mas o sentimento é de se estar
vivendo um “rito de passagem”. Como a vida vazia, sem rumo e sem perspectivas do
personagem. Daí decorre a necessidade de fantasiar, e fica mais fácil sonhar
quando não se tem reciprocidade ou uma espécie de contrapartida da vida em
sociedade. O alterego do escritor busca a satisfação momentânea valorizando os
prazeres etílicos dos bares. Isto não esconde, porém, a insatisfação disfarçada
nos agentes de fuga da realidade dura e seca.
As figuras de Nivaldo Gonçalves, se
gostam de falar, precisam também ouvir: seu aprendizado é permanente, porque
significa a condição sem a qual não sobrevivem. Então, se configura igualmente
a tradição de uma “novela de formação”, o que é a mescla entre ficção e
realidade e, ao mesmo tempo, história de uma viagem em busca de sentido, de
aventura e de afirmação. Contudo, se mostra uma novela de negação, de carência,
de insatisfação, eis que o escritor, ao final, não pretende dar conselhos. Como
diz o personagem do conto “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, de João
Antônio: - “O ganhador ganha, não ensina o caminho”. E então, na busca da
palavra, salta-lhe a expressão necessária, também ele, à semelhança de seus
personagens, está fora do esquema, vê-se obrigado, permanentemente, a uma luta
corpo a corpo com a vida. Porque também ele, à semelhança de seus personagens,
vive à margem, vive pra lá de Marrakesh. Ele, com seus personagens, são heróis
e vítimas deste sistema econômico e social, frio e cruel que entre nós medra.
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