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Fora da ordem estabelecida



Interior grego de Jean-Léon Gérôme, de 1850








O poeta trágico grego reinterpreta subvertendo
o mito de Dionísio










            A tragédia “As Bacantes”, do terceiro e último dos trágicos gregos, Eurípedes tem sido desde a sua primeira apresentação, no festival dionisíaco do ano 454, objeto de polêmicas entre estudiosos da peça. Definida alternadamente como um manifesto contra o fanatismo religioso ou como elaboração poética do rito religioso, “As Bacantes” continua sendo um dos exemplos mais significativos do que se convencionou chamar “obra aberta” traduzida por Francisco Aschar, Antonio Medina e Ian Torrano. A peça foi publicada pela L&PM Editores.
       As interpretações sobre a humanização do deus Dionísio, filho de Zeus e da virgem Sémele, que desce à terra como o atraente Baco, variam de uma alegoria contra a ordem estabelecida a uma intransigente defesa dos marginalizados pela sociedade.
    E segundo essa perspectiva, os ensaístas contemporâneos têm analisado a peça de Eurípedes, uma das 92 que o trágico grego escreveu das quais 19 chegaram até os dias atuais. O problema das Bacantes é Dionísio, porque as bacantes o representam como um deus e, para que a razão se demita e se recuse a dar um passo, basta que nos assalte a tão leve suspeita de que os deuses da Grécia possam ter sido mais do que nomes poeticamente significativos das mesmas realidades que designamos em prosa chã.
            Parece não existir discordância a respeito de que o tema fundamental da tragédia grega é o mito. Para Eurípedes, o mito seria o equivalente de uma falsa autoridade utilizada para manter conceitos primitivos. A montagem de “As Bacantes” pelo diretor José Celso Martinez, que traduziu ao lado de Catherine Hirsch, e a atriz Denise Assumpção, pretenderam ir além, equilibrando essa discussão racional sobre o mito com o contraponto orgiástico e delirante de uma nova concepção teatral.
         A adoração de Dionísio era, de certo modo, deslocada do espírito convencional religioso na antiga Grécia. A peça fala de um grupo de mulheres pertencentes a uma congregação de fé, que atingiam o estado de histeria pela música, pela embriaguez e pelo consumo de sangue de animais sacrificados durante os rituais. A união com o divino seria resultante dessa negação quase total do “self” e a entrega, sem reservas, às bacanais. Qualquer atitude contra o reconhecimento da divindade de Dionísio, traria, então, como consequência, distúrbios sociais. Penteu, o tirano que ousa contestar Dionísio, seria uma espécie de político burocrata, assexuado. Ele manda encarcerar o deus nos estábulos do palácio real, provocando uma reação histérica do coro.
            A vingança de Dionísio contra todos aqueles que se recusam a reconhecer sua divindade, embora não seja totalmente incompatível com a atitude que se esperaria de um deus, na antiga Grécia, é amena. A pessoa “humana” de Dionísio deixa em aberto a possibilidade de que Penteu nem venha a manifestar o intento de assaltar à mão armada as suas Bacantes; deixa lugar para a eventualidade de conseguir vencer os preconceitos do tirano pela evidência do milagre ou pelo vigor de uma linguagem persuasiva. Eurípedes discute, enfim, a supremacia da razão em confronto direto com os apelos do inconsciente. Como se vê, um tema atualíssimo.









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