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Obra com infinitos centros











            Como resumir, neste pequeno espaço, o livro que mais instiga, o romance mais importante da literatura brasileira contemporânea? Lembro o impacto sentido ao ler a obra pela primeira vez, emprestada de um bom amigo cujo gosto pelo autor beira a paixão. Confesso que temi iniciar a obra, embrenhar-me no rigor matemático em que conviviam o calculado e o imponderável, a ordem e o caos, a geometria e o lirismo. Abri Avalovara, fechei-o, abri-o de novo, olhos bordejando o texto como para logo seguir viagem. Partir c´est mourir um peau. Percebendo a morte, intuía o renascimento ao seu final. Hoje, após tantas leituras e releituras, o fenômeno se perpetua: espiralada, nasço e morro e renasço em infinitos centros.
         O plano do livro é baseado na ideia da espiral e num famoso palíndromo latino, frase disposta em cinco linhas que se pode ler em todas as direções: da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima – SATOR – AREPO - TENET – OPERA – ROTAS – frase que significa aproximadamente: “O Criador mantém cuidadosamente o mundo em sua órbita”.
       Prosseguindo: sobre o quadrado palindrômico, imagem do espaço cósmico e da página do livro (na opinião de Antônio Cândido, no prefácio), superpõe-se, a girar, de fora para dentro, a figura de uma espiral, símbolo do tempo, instantâneo e eterno. Tempo e espaço que constroem o palco dos acontecimentos humanos e são os dois elementos que o ficcionista manipula em forma de arte. Vê-se que a espiral, girando, perpassa sobre 25 casas relativas às letras do palíndromo. Há aí oito letras distintas e cada letra corresponde a um tema. Assim, a sucessão de temas que se entretecem na obra é governada pelo giro da espiral em direção ao N, centro do quadrado e final do romance.
         O desdobramento dos temas ou histórias se traduz na estória de um homem que amou três mulheres. Cada experiência amorosa enriquece os personagens permitindo criar uma tessitura urdida de passado, presente e futuro, fios que se entrelaçam na aventura universal do ser. Diz Antônio Cândido; “Toda a narrativa converge para a plenitude amorosa, numa espécie de gigantesca câmara lenta, que concentrasse o tempo no espaço limitado no limitado instante em que a plenitude é buscada”.
         Um texto que talvez resuma o pensamento contido em Avalovara: “Não julgar que a existência humana, enquanto inconclusa, seja um poliedro incompleto do qual a morte é o último lado, não, o poliedro move-se e suas faces e arestas proliferam, crescem conosco, mais ou menos brilhantes, assim como todos e mais ainda comigo, de vida dúplice, duas vezes nascida, com duas idades, dois corpos, de modo que as faces do poliedro se traspassam, umas em outras se refletem”.
         Se é possível resenhar um livro de tal fascínio, magia e verdade? Penso que não. Abel (e seus três amores) penetra e se interpenetra na pele do leitor, em seus ossos, memória e seu sangue, no sumo essencial. Para os que ainda não tiveram o privilégio de ler o romance direi apenas que Avalovara é pássaro composto de pássaros, voos, abelhas, imagens que cantam, zunem, zumbem em silencioso ruído inesquecível. Obra perfeita sob todos os aspectos, múltipla e uma, real e fantástica, moderna e atemporal, nesta quarta edição, agora, pela Guanabara, o tesouro se faz e se refaz em infinitos movimentos espiralados. Existindo. Sempre como fala Osman Lins, a certa altura de Avalovara: “Os textos de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais”.





AVALOVARA
Osman Lins
Romance
Editora Guanabara
446 Páginas
4ª Edição
1986








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