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Estilhaços de imagens desnorteadas








Escritor explora a mitologia dentro da história universal








Apesar de muito citado por escritores (sobretudo os da nova geração), o romance Lugar Público, de José Agrippino de Paula, continua a ser pouco lido, pouco digerido, pouco compreendido. Isso pode ser explicado, em parte, pelo desafio que a narrativa impõe ao leitor para se acostumar com o estilo do autor ou mesmo aprender a lê-la de modo funcional. Sem obedecer à lógica da clareza narrativa e a estrutura linear ou qualquer outra regra de escrita comum, seu estilo fragmentário, o livro aborda o cotidiano caótico de uma grande cidade na qual os personagens com nomes de figuras históricas como Napoleão, César ou Pio XII vivem de forma errante. Assim, o romance é menos radical que PanAmérica, pois explora apenas os mitos antigos. Característica do escritor em explorar a mitologia dentro da história universal.
 Em PanAmérica,  segundo romance do escritor, explora de modo intenso e subversivo a mitologia contemporânea. Dois anos antes, em 1965, ele lançou, pela Civilização Brasileira, Lugar Público, recebido com entusiasmo por Carlos Heitor Cony, então badalado romancista e cronista político e que assinou a orelha do volume. Até então desconhecido como escritor, o jovem autor de 28 anos causou grande perplexidade na cena literária brasileira – ajudado, em parte, pela fama da editora de relevar novos talentos, o que despertou interesse da crítica. Cony observa que a escrita que marca a estreia de Agrippino de Paula “possui afinidades com a de escritores franceses da década de 1950, criadores do chamado nouveau roman, pelo objetivismo da narração e o antipsicologismo na construção dos personagens.
O livro imprime a confluência de variadas vertentes do pensamento e da literatura na sua formação como escritor, no início dos anos 1960. Mas de Paula trabalha tais referências, projetando-as em um plano ficcional elaboradamente fragmentário, de modo a tornar acirrada a consciência que os personagens têm do tempo e do lugar público a eles reservados, assim como a impossibilidade de escaparem à deriva, ao desnorteamento em relação a qualquer meta, a qualquer contorno psicológico ou funcional. Daí, a adoção da caminhada incessante de um grupo de jovens “desocupados” por uma grande cidade como eixo básico das ações transcorridas no romance.
Obscurecido talvez pela luz pop e espetacular da epopeia PanAmérica (1967), o título pelo qual o autor é saudado como um experimentador à parte, na literatura brasileira, representa um exemplo singular do ethos político-cultural dos 1960. “Sombrio” é, por sinal, o termo empregado por Caetano Veloso, quando se refere ao livro de estreia do escritor, no prefácio da terceira edição do mesmo, em 2001. No entanto, mais de quarenta anos após sua primeira edição, o outro título de José Agrippino, seu livro “obscuro”, revela traços precursores, intrigantemente atuais, que nada ficam a dever à saga multimediática de PanAmérica.
A contar de seu relançamento tardio há alguns anos, Lugar Público produz uma espécie de contraponto ao segundo romance, que consagrou seu autor, pelo fato de investir nas sombras, nos recônditos do espaço urbano, apontando para a deambulação de personagens colhidos na multidão, em vez dos ícones do cinema e da cultura, como ocorria na hiperficção de PanAmérica. É como se, publicado antes, mas lido somente depois de 44 anos e do reconhecimento de José Agrippino pela crítica e pelo público, o romance só apresentasse agora sua real dimensão.
Seus livros atraíram admiradores dedicados, que passaram a cultuá-los como clássicos da literatura brasileira dos anos 60. Transformaram-se em tema de estudos de pós-graduação, embora permanecessem por três décadas fora de catálogo – somente em 2001, voltou pela editora Papagaio, de São Paulo, que incluiu a valiosa apresentação de Caetano Veloso. A presente dissertação apresenta algumas considerações sobre a natureza e o papel do narrador no livro 'Lugar Público', de José Agrippino de Paula. Um aval e tanto para quem pensa em esclarecer o impacto que determinado tipo de narrador provoca na organização da narrativa em questão e seus efeitos no sentido da obra. Afinal, consideramos Lugar Público livro paradigmático para se compreender certo tipo de escritor que frequenta histórias contemporâneas e que problematiza questões importantes relacionadas ao estatuto narrativo em tais ficções, questionando formas tradicionais de se contar a ponto de dissolvê-las. Tal escritor se vale, eminentemente, do olhar para estruturar sua descrição. Para tanto, relacionaremos a noção de sujeito depreendida da leitura do livro, através da construção da figura do autor, à forma como ele configura o cenário público ali presente. São cacos de um espelho que refletem os espaços da narrativa e a cidade.










LUGAR PÚBLICO
José Agrippino de Paula
Literatura Brasileira - Romance
Editora Papagaio
272 Páginas
2ª Edição
SÃO PAULO - SP
2004














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