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Falhas do sistema desumano

  
 (Da esq. para a dir.) O cineasta Tuna Espinheira que adaptou o livro Cascalho de Herberto Sales








Ficção científica denuncia os absurdos a que o mundo pode chegar quando as dimensões humanas são relegadas








O romance O Fruto do Vosso Ventre, de Herberto Sales, trata de uma sociedade hipotética e futura, em que os problemas de superpopulação exigem que o governo intervenha na área da concepção atingindo o extremo da sua total proibição.
Por meios anticoncepcionais rigorosos, e através do aborto compulsório em caso de falha, estabelece-se uma sociedade em que não existem mais crianças, nem tampouco a necessidade delas.
O caminho para a realização dessa brutal utopia, no entanto, é a mais sórdida burocracia, baseada em leis, normas, regras, enfim, toda sorte de expedientes controladores dos mínimos atos do indivíduo. Mas essa burocracia terrificante não é gratuita: está intimamente ligada à estrutura econômica dessa sociedade, onde a produção passa a ser o objetivo supremo e o homem mero apêndice dela.
São óbvias as revelações entre essa sociedade fictícia e os possíveis desdobramentos das sociedades reais da atualidade, amplificadas por aspectos laterais como, por exemplo, ser ela a remanescente de uma guerra nuclear que havia destruído o restante do mundo. Ao contrário de uma visão derrotista do futuro, trata-se de um alerta evidente.
“O Livro do Filho”, capítulo final do livro, demonstra que o romance não é derrotista. Levadas às últimas consequências, a vida em uma sociedade como a construída no livro estaria fadada à extinção. O escritor, entretanto, convicto da necessidade de uma saída, recompõe, em linguagem bíblica, a continuidade da vida, com o surgimento de um fruto inesperado: é o início de uma nova era, representada pelo fantástico e apocalíptico final, com o ressurgimento de todas as crianças anteriormente impedidas de nascer.
A simbologia eleita pelo escritor o distancia tanto do restante do livro, calcado em rigorosa lógica e em crítica impiedosa, onde o sentido realista sobreleva-se a outros possíveis projetos. Em “O Livro do Filho”, o sentido realista é recuperado não ao nível aparente, mas pela compreensão cabal da desumanização do homem e de seu absurdo e inviabilidade, expressos poeticamente pela fábula bíblica. Há a certeza o homem produz o milagre ou, ao contrário, de que se opta por sua própria destruição. A escolha não poderia ser outra que seja construída uma existência digna para todos.
Do absurdo das situações colhidas na realidade cotidiana para a imaginação de outras, ainda não ocorridas, mas que são as últimas consequências do atual estágio da sociedade, é um pequeno passo, principalmente para quem está atento às notícias diárias. Colocando-as sob análise e extrapolando para além do imediato através da imaginação criadora, pode-se compor uma sociedade. Ainda mais aterradora que as existentes, onde o espaço para a liberdade se limita assustadoramente e a burocracia impera sem qualquer atenuante. É o que fizeram Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, e George Orwell, em 1984 e A Revolução dos Bichos.
Entre nós, afora algumas tímidas tentativas como, por exemplo, a Fazenda Modelo de Chico Buarque de Holanda, publicado em 1974, (evidentemente metáfora do Brasil sob repressão e ditadura), só Herberto Sales ousou navegar por mares de hipóteses que, se são aterradoras em sua crueza, prestam-se ao alerta e, em última instância, a que se impeça a continuidade de realidades tão desumanas.
A denúncia está presente em toda a sua radicalidade em O Fruto do Vosso Ventre e em Einstein, O Minigênio (Civilização Brasileira, 1983), que têm sua origem em fatos como a explosão populacional, o controle da natalidade compulsória e à margem dos interesses dos povos, os bancos de sêmen, a produção genética de gênios, a construção de uma raça superior, etc. Mas, se esse é o quadro notório, o pano de fundo que em absoluto não escapa ao autor, é o próprio crescimento da sociedade capitalista, burocrática e autoritária, de todas as nuanças ideológicas.
Herberto Sales, ligado ao neo-realismo das décadas de 30 e 40, nunca abandonou esses parâmetros em sua forma de escrever e abordar os assuntos mais variados, tendo sempre por horizonte a crença na humanidade, algumas vezes expressa, como no final do livro, numa verdadeira declaração de fé, que, se é destituída de qualquer mística religiosa, foi justamente a imagens dela que recorreu como expediente literário.
Na última parte, intitulada “O Livro do Filho”, há uma reversão total dos acontecimentos, tanto na forma, como no conteúdo. Ao estilo alegórico da primeira parte e à mordaz e cansativa sátira ao mundo tecnicista e opressor da segunda, nos deparamos com um texto que se quer redentor. A prosa é dividida em duas colunas, tal qual uma página da Bíblia e os parágrafos numerados como se versículos fossem.
Numa festa de aniversário do filho de Teodorico e Isabel, uma prima desta, Maria conhece José. Em pouco tempo apaixonam-se e se casam. Quase que por um milagre, mesmo tomando pílulas Maria engravida e decide fugir com José a ter de abortar. A referência aos nomes do casal e sua fuga posterior é claramente cristã. O casal consegue fugir da Ilha, salvando a criança. E tal qual um messias, ela volta já adulta para acabar com a ditadura e libertar as crianças não nascidas que, como num toque mágico, despontam numa nova sociedade conduzida por elas.
A decisão do autor de enveredar por este lado religioso já estava implícita no próprio título da obra. Mesmo assim a solução adotada retira qualquer participação dos cidadãos nos seus destinos históricos, ora oprimidos por um sistema tecnocrático, ora libertados por um ser espiritual, tal qual Jesus, que anda pelas águas e sobe aos céus. Nesse sentido o desfecho do livro limita suas possibilidades transformadoras, como ao menos se espera em histórias anti-distópicas da qual esta dialoga.











O FRUTO DO VOSSO VENTRE
Herberto Sales
Ficção Científica
192 Páginas
3ª Edição
Editora Civilização Brasileira
Rio de Janeiro - RJ









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