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Barbárie da normalidade



Para o artista romântico, existe um parentesco profundo entre arte e loucura. Esse parentesco significa que o eu autêntico é o eu não-socializado, não sufocado pelas convenções civilizadas ou universalizado pelo senso comum. Acredito que tal compreensão deriva, frequentemente, para uma crítica não-dialética aos constrangimentos sociais, entendidos como fachadas que encobrem o verdadeiro eu. Como Pier Paolo Pasolini, não acredito na dialética. O que existe são oposições irreconciliáveis. Vou parafrasear naquilo que Sigmund Freud afirma em “O mal-estar na cultura”: existe um movimento cada vez mais restritivo, não só da vida sexual, mas da subjetividade de modo geral. É também, de certa forma, um texto paranoico em relação à cultura, que é entendida como repressão. Quanto ao parentesco entre arte e loucura, acho que o “desregramento de todos os sentidos”, de que falava Arthur Rimbaud, refere-se não propriamente à loucura, mas a um estado de transe. Um estado de transe xamânico, porque Rimbaud era um alquimista, um xamã avant la lettre, que propõe mesmo a “alucinação das palavras”; o termo é dele. Os artistas, como afirma Joseph Campbell, são os xamãs da sociedade contemporânea.
A loucura propriamente dita é uma coisa muito triste e horrível. Quando Johan Huizinga fala que o louco, o poeta e a criança têm coisas em comum, ele está pensando na criação artística, na imaginação fértil, propiciatória. A esquizofrenia em si é uma coisa muito melancólica. Às vezes, tomamos por loucura não a “doença mental” especificamente, mas as manifestações do irracional. Aquele impulso para o irracional que, conforme Pasolini, acabou fazendo do Ocidente, que tanto se empenhou em negá-lo, a vítima mais fatal. E temos aí a história que não nos desmente, não é mesmo?
Fazer literatura seria uma forma de transgredir as regras da língua portuguesa e da gramática, propondo uma identificação entre os sujeitos poético e empírico?  Só declaro, incisivamente, que não escrevo para agradar leitores, mas mergulho fundo e, ao emergir, soltar os demônios! Como afirma Octavio Paz: “há uma única forma de se ler os jornais e várias formas de se ler um poema”. Cada pessoa enxerga uma coisa diferente na poesia, pois no fundo ela é muito rica e permite uma enorme variedade de interpretações. A qualidade do arremate literário não exclui a radicalidade das experiências que estão na origem do poema. Mas, que essa valorização excessiva da fatura pode revelar certo preconceito contra o dionisismo, a ideia de superficial. Está errado. O dionisismo é uma das religiões mais profundas que já existiram. Basta ver que uma das suas manifestações produziu o teatro. Quer mais do que isso? Dionísio, o deus do teatro. Das artes da aparência empalideceram diante de uma arte que proclamava a sabedoria na sua própria embriaguez. Donde a estética cabaço, atuando nas mais diferentes escolas literárias pelo Brasil afora. Vivemos num país profundamente dionisíaco, onde os intelectuais têm preconceito contra as manifestações espontâneas, criativas, a exemplo da poesia marginal, dos anos 1970, tem a ver com isso.
Desde que foi expulso da República de Platão, todo poeta é marginal. O Brasil precisa de poetas perseguidos pela sociedade, o resto é literatura. Os críticos acadêmicos escreveram que a poesia marginal, buscando aproximar a sensibilidade do poeta da do marginal, do bandido, descambou para um tipo de idealização, de estilização que esvazia a experiência social, concreta, da marginalidade. Os bandidos, até a década de 1970, eram românticos e possuíam uma ética. Pasolini foi o primeiro a notar isso em seus ensaios. Numa sociedade de massas, o banditismo e a criminalidade também estão massificados. Há uma indiferenciação muito grande. Hoje, mata-se porque o cara não gostou dos óculos que o outro está usando. Ou porque alguém sentou no paralama do seu carro. Eles dizem: “Roubei o tênis que eu vi na televisão porque quem usa esse tênis é bacana”. Pela experiência, Ivan Illitch argumenta que uma cidade com mais de duzentos mil habitantes será inviável, diz ele, a partir do ano 2000. O que estamos testemunhando nos hospitais não é o simples desleixo, mas é a crise da Medicina. Como estamos assistindo à crise da Economia. Não é uma crise econômica, mas uma crise da Economia.
E tudo se liga à uma crise do urbano. Não importa mais checar índices de criminalidade. Nem associar o ser urbano à figura do centauro, mas um ser sem horizontes; só enxerga o tênis que ele não tem. Então, o indivíduo mata, às vezes, por um tênis; não pelo benefício econômico que aquilo vai lhe trazer, mas pelo prestígio. Nos anos 70, conheci muitos adolescentes marginais, o equivalente dos que hoje estariam na Fundação Casa. Um deles sabia Baudelaire de cor, “As litanias de Satã”, e andava com o Zaratustra do Nietzsche debaixo do braço. Era ladrão, assaltante, mas nunca matou ninguém. Havia um princípio ético que ainda regia a vida daqueles bandidos. Eles também eram de extração rural. Agora, os adolescentes são todos urbanóides, pálidos criminalóides de periferia. Hoje, sem a gíria criativa do subúrbio, os jovens da periferia, só querem uma moto para colocar na garupa a indefectível garota ornamental. E apenas grunhem.
Atualmente, existe é uma criminalidade de massa perigosíssima, porque o homem normal se transformou em criminoso. O homem normal, diz Pasolini, é um monstro. Conforme registro histórico e reflexivo de Hannah Arendt, com o Eichmann em Jerusalém, que não me deixa mentir. Quem é Eichmann? Um cara pavorosamente normal, absolutamente medíocre, que fala por clichês e que mandaria matar o próprio pai se recebesse uma ordem superior nesse sentido. Um burocrata sinistro, enfim. Mas há muitas pessoas que não têm essas ideias fixas, essas ideologias cimentadas em espaços mortos, esse passadismo que procura deter o dinamismo do pensamento. Serei sempre um advogado veemente das ideias biodegradáveis conciliando com minhas convicções, como propunha Álvaro de Campos, que não duram mais do que um estado de espírito. Nunca mais do que um dia. Vejo por aí pessoas enraizadas em ideologias fascistas e comunistas, cheias de dores de corpo, mal entendidas, enxaquecas. Por isso, Nelson Rodrigues dizia: “Tem de morrer até o último idiota”. Mas todo dia, “nos cabides de vento das maternidades”, nasce “um batalhão de novos idiotas”, como escreve Roberto Piva no poema “Visão 1961”, incluído em Paranoia.
A fragilidade e o ato transgressivo da poesia seria uma forma de abrir brechas na realidade, como Charles Baudelaire, Antonin Artaud, Gottfried Benn e Georg Trakl, mas não impediu a criação do campo de concentração de Auschwitz, do Gulag e dos hospitais psiquiátricos! O poeta não existe para impedir a barbárie e a banalidade do mal, tão presente no século XXI. Ele existe, sim, para impedir que as pessoas parem de sonhar.


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