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Resgate na contracorrente


Mergulho



 
Por que as pessoas escrevem? Essa pergunta eu me faço com demasiada frequência, sempre que procuro, para meu próprio gasto, encontrar motivo um pouquinho além das mistificações que a nossa míope sociedade de consumo veicula. Creio que muita gente compartilha comigo dessa sensação inesperada de vazio. Acho que quem mais sofre isso, num país como o Brasil, são as pessoas ligadas à criação artística, simplesmente porque elas vivem mais agudamente as contradições entre a realidade e aquilo que fazem. É claro que não me esqueço nunca de que meu ofício literário é antes de tudo o assunto de responsabilidade minha. Mas, às vezes, a realidade é tão dura que a insistência dessas perguntas acaba tornando-a insuportável.
Quando a gente sai nas ruas de uma grande cidade como São Paulo e depara com famílias inteiras acampadas debaixo de um viaduto, a dor que dá é uma dor de jogar tudo longe: diante da miséria sem retoque, um gesto de puro mergulho no subjetivo, como esse de escrever literatura. Parece obsceno, além de inútil. É verdadeiramente desestimulante. O que me costuma acontecer nessas horas é pensar em tantos outros, antes de mim e em outros países, que com certeza passaram pela mesma prova (porque é sim uma dura prova). E a primeira coisa que me ocorre é que para todos nós criar deve ser, antes de tudo, um ato de fé. Gosto de pensar, então, que se trata de um verdadeiro milagre brasileiro: criar contra a corrente, num país em crise que, como se não bastasse, viu seu frágil aparato de arte desacreditado e desmantelado em nível oficial, nestes últimos anos.
Basta, para tanto, lembrar uma foto no estilo noir, em preto e branco, a realidade nua e crua, pungente sobre o que estamos acostumados a assistir na relação  capital versus ser humano, trabalho versus gente, em que a idade torna-se uma senha para um apartheid funcional e o ser pensante foi rebaixado para simples secretaria. Crítico e artista não têm lugar num sistema produtivo, em que as tarefas repetitivas e enfadonhas apequenam e insularizam o ser. E é uma óbvia crítica ao mercado, que ávido de competição e produtividade, proscreve os de meia-idade, porque o capital só enxerga agilidade nos mais novos, estes também fáceis de manipulação, porque para mostrar o melhor de um produto, acabam revelando o pior de si. Assim, também, os testas-de-ferro dessas empresas que agem em nome de um patronato insensível e sem rosto. Espelhou-se bem o status quo. Num nível de importância obviamente inferior aos demais grandes problemas nacionais. É claro que a pergunta se impõe automaticamente: para que serve um artista? Será que um belo Vincent Van Gogh na parede só serve para exibir um tesouro de alta valorização no mercado? Será que Van Gogh se reduziria apenas a essa medida em cifrões? E nós que não somos Van Gogh, que sentido sobraria para nós? Sobraria exatamente o motivo que tornou Van Gogh um valor da humanidade. Van Gogh é um remanescente (e necessário) repositório dos sonhos coletivos.
Enquanto artista, sua função é justamente aparentar não ter função nenhuma: ele existe apenas para despertar em nós esse encantamento poético que não somos capazes de obter facilmente no cotidiano. Talvez só no amor ocorra algo parecido: o amor nos revela o deslumbramento da pessoa amada e provoca um mergulho para além de nossa rotina diária. Van Gogh precisa ser uma afirmação, talvez contra a corrente, de que cada um de nós necessita dessa vivência interior tão necessária para que a humanidade não regrida à barbárie. Acho que nós criadores de arte somos como para-raios da humanidade: captamos alguns sentidos perdidos para passá-los adiante numa forma que é especial justamente porque transporta os seres humanos para um outro nível, que poderíamos chamar de transfiguração.
Penso que essa é a função da poesia e da literatura: trazer-nos de volta a nós mesmos, num mundo onde somos cada vez mais medonhamente manipulados pela publicidade e pela mídia. Sim, a poesia e a literatura são tão necessárias quanto o pão nosso de cada dia. Isso não quer dizer que me interessa perguntar sobre as óbvias motivações que movem, por exemplo, a literatura de massa, que tem a sua expressão na indústria do best-seller. Prefiro me reportar àquela produção literária cujo compromisso é, antes de tudo, com a expressão poética, elemento não computável em fórmulas de sucesso obrigatório e com meros objetivos de lucro. A literatura que me interessa aqui é aquela que funciona como poderoso meio de expressão do mistério poético, cuja lógica as regras sociais não alcançam. De modo que eu talvez devesse reformular a pergunta inicial e, em outras palavras, inquirir porque as pessoas procuram os caminhos da literatura como forma de expressão pessoal. Quaisquer que possam ser as respostas, sou levado a concluir que escrever costuma implicar num gesto contra a corrente. Dentro de uma ordem social onde tudo está submetido aos critérios do progresso e da eficiência financeira, aquilo que estiver fora desse objetivo torna-se secundário, dispensável e, em certos casos de reincidência, passa por irrealista, quando não for francamente anormal.
As pessoas escrevem, na opinião de Octavio Paz, por viverem em estado de desequilíbrio – simplesmente porque a chamada civilização “é a expressão do desequilíbrio congênito dos homens.” Paz fala também em “desequilíbrio criador” e a propósito cita o poeta chinês do século VIII Han Yui, para quem a coisas necessariamente ressoam sempre que seu equilíbrio se rompe. O mesmo ocorre com os humanos: falam porque não podem se conter, cantam porque estão emocionados e se lamentam porque sofrem – respostas variadas ao equilíbrio perdido. Ora, a literatura vem respondendo a essa mesma situação: quando o equilíbrio se rompe, diz Han Yui, “o céu escolhe entre os homens aqueles que são mais sensíveis e os faz ressoarem” pela poesia impressa nas palavras. O verbo poético acaba sendo um testemunho de nossas imperfeições, mas também a retomada do equilíbrio, num outro nível. Por seu caráter pessoal e solitário ao extremo, o ato de escrever exige necessariamente um mergulho interior e, com isso, implica numa propensão para o resgate do nosso eu mais esquecido.

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