Tanta gente escreve,
na verdade, para não ficar louca ou, simplesmente, como forma de ser amada. Basta
lembrar, para tanto, a contundente análise feita por Antonin Artaud sobre o assassinato implícito no gesto suicida
socialmente imposto a Van Gogh –
situação essa, aliás, vivida pelo próprio Artaud, que durante boa parte de sua
vida viveu confinado em hospícios e definhou de câncer depois de, já
consagrado, ver a sua peça radiofônica “Para Acabar com o Juízo de Deus”
impedida de difusão por um censor que a considerou ofensiva demais para os
ouvidos franceses. O drama de Artaud,
repetição do drama de Van Gogh, vem se
repetindo no decorrer da História e, certamente, está ocorrendo hoje, agora,
com não poucos criadores de poesia. No Brasil, recordemos de Arthur Bispo do
Rosário, artista plástico, onde a sua figura insere-se no debate sobre o
pensamento eugênico, o preconceito e os limites entre a insanidade e arte neste
país! E, no entanto, as pessoas continuam criando obcecadamente, no seu gesto
quotidiano, mas clandestino. Por que? E realiza essa utopia com verdadeira
obstinação – contra a corrente tanto do quotidiano quanto da sociedade de
consumo que, com sua obsessão pasteurizadora, determina ao mundo o que é in e out. Tais reflexões não me ocorreram como resultado de leituras e
mera especulação. Elas puderam ser comprovadas na prática dos meus doze anos de
oficinas literárias, que coordenei na Oficina Cultural Timochenco Wehbi, em
Presidente Prudente, São Paulo.
De todos os cantos da
cidade aparece um pequeno grupo de clandestinos reunidos por um único e casual
vínculo: a mesma insensatez obstinada de escrever sem saber por que nem para
quem. São pessoas que variam dos 16 aos 84 anos, das mais diversas profissões:
estudantes universitários, de letras ou não, pré-vestibulandos, atores,
comerciários, donas-de-casa, jornalistas, funcionários públicos, secretárias,
advogados, professores, recepcionistas, aposentados, desempregados e até
office-boys. Gente escrevendo poesia, ficção científica, pornografia,
autobiografias ou biografias mal disfarçadas, contos urbanos ou projetos
regionalistas. Sua produção está cheia de personagens que fazem perguntas de
impossível resposta, seres enfiados em prédios, a espiar o mundo pelas janelas,
abestalhados diante do vazio das televisões ligadas; personagens perdidos,
tropeçando pelas ruas feias e apinhadas, ou à procura de gente, nos bares da
vida, casais rompendo, casais se torturando. E o amor, soberanamente presente
seja em textos de qualidade discutível seja em textos de excelente nível.
Costumo trabalhar de
uma semana a dez dias, em período de três horas consecutivas. É um trabalho
duro. Perturba-me muito não só a ânsia com que esse anônimos escritores se
candidatam, mas também sua generosidade e arrojo, como se jogassem sua última
cartada. Frequentemente, recebo mensagens eletrônicas e livros.
Inevitavelmente, sinto-me como se estivesse carregando todas as dores do mundo,
pois o que tenho diante de mim é, sem dúvida, uma amostra da perplexidade do
meu tempo. Essa sensação se agudiza com a chegada de cartas e envelopes
contendo livros que pedem uma resenha literária, suplicando minutos de atenção
e, quem sabe, um lugar ao sol. Em qualquer dos casos, o que tenho diante de mim
é gente pedindo socorro. E pedem socorro a quem? Basicamente, a si mesmos, pois
o que pretendem, no meu comentário, é um encontro inequívoco com sua forma de
expressão poética, quase indecifrada no interior de si mesmos. Em todos,
indistintamente, sinto essa necessidade de encontrar a modulação exata do seu
eu poético – às vezes com uma surpreendente consciência do fato. Lembro, a
propósito, de um poema sintomaticamente chamado Fragmentos, onde o autor José
Dias de Lima aproxima sua dor de não ser amado com a dor da poesia abandonada,
numa mescla de grande acuidade poética. O poema começa assim: “Olha a poesia /
no fim do dia derramada / e, aos fragmentos, nas estradas / pisoteada pelos
leigos / nada...”
Aliás, uma das
sensações fortes que tive neste contato com a produção literária mais anônima é
uma enorme irritação, na maioria desses autores desconhecidos tenho lido pouca
coisa boa e instigante. Claro que existe muita vaidade embutida nas pretensões
literárias dos autores iniciantes. Há, por exemplo, uma grande quantidade de
pessoas repetindo exauridas fórmulas das vanguardas do começo do século, como
se estivessem descobrindo o ovo de Colombo. Aparecem os inevitáveis candidatos
a concretistas, que adotam encher os seus poemas visuais com notas de rodapé
(todo poeta tem que ser também um crítico!), os líricos aguados imitando
Vinícius de Moraes e Chico Buarque, caracterizando o clipart, o kitch (clichê),
utilizando palavras açucaradas sob a lua salobra, em sua espantosa arrogância
(julgam-se gênios indiscutíveis), e não percebem que estão fazendo, há mais de trinta
anos, o mesmo poema com as mesmas regrinhas e compassos. Há também aqueles que,
pelo fato de terem publicado um livro com edição paga pelo próprio autor,
decidiram que são escritores irresistíveis e adotam as posturas mais estereotipadas
enquanto autores. Claro que não admitem ressalvas ao seu texto, mesmo que
tenham se candidatado a uma oficina cujo objetivo básico é checar e limpar os
textos. Há, ainda, aqueles que adoram fazer qualquer oficina que lhes apareça
sob o nariz – eternos diletantes que nunca realizam nada, mas mantém acesa a
chama de sua “arte incompreendida.”
Sejam quais forem os
senões, esses autores iniciantes me parecem anônimos tecedores de uma poesia
que, apesar de obscura, é fundamental. Tais seres desconhecidos da mídia, que
fazem calada e obstinadamente a sua poesia de cada dia, acabam criando uma
privilegiada e rara comunicação com o coração do mundo. Eles me lembram
minhocas fertilizadoras da terra: sem eles, provavelmente, o quotidiano do
mundo seria completamente irrespirável. Em sua solidão, e ainda que se
desconheçam mutuamente, parece-me que eles estão compondo em conjunto um dos
sustentáculos do mundo. Graças ao seu mergulho desconexo, eles imprimem
significado ao caos deste começo de século, verdadeiro período pós-tudo –
pós-inocência, inclusive. E se a poesia é filha do caos, devo admitir que as
especificidades do caos atual obrigatoriamente irão criar uma poesia muito
particular, surpreendente. As grande energias que irão eclodir neste milênio
com certeza são engrossadas por esse mergulho anônimo no caos atual. É dele que
sairão os grandes autores do século XXI.
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