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Literatura como possessão



A minha genealogia literária apresenta raízes e inclui influências muito díspares na literatura prudentina e região oeste do Estado, formando uma mistura fina que é única por erudição, mas também por transgressão. Começa com o “Poema Sujo” e os ensaios sobre cultura e artes plásticas de Ferreira Gullar. Ainda no final da década de 70, aprofundei-me nos estudos da geleia cultural e filosófica de Jorge Mautner e a contracultura de Luís Carlos Maciel. Esse contato com a reflexão existencialista permanece ao mergulhar na prosa de Clarice Lispector, foi como um imprinting poético-filosófico: marcou para sempre minha visão de mundo, de política e da poesia.
Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, comecei a aprofundar minha experiência mais direta com o sagrado e a vida interior. O contato com a obra de Nietzsche, um profeta pessimista e decifrador da alma moderna, temperou o espírito e o intelecto de contundências. Mas a fome voraz de novidades descobriu Arthur Rimbaud e Lautréamont, recebendo a influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias. A partir daí, iniciou-se em minha vida o cultivo do rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das vanguardas do começo do século 20, absorvi lições do surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René Crevel.
Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, espontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.
Uma expressão poética persegue o rastilho da escrita automática, com devidos créditos à Geração Beat, de extração surrealista: recuperar para a poesia os estados primitivos do sonho e da loucura. No caso, talvez fosse mais adequado falar em escrita delirante. Essa prática levou, também, no caso do poeta brasileiro, à utilização do método da livre associação de juízos, a partir da crença na importância poética do inconsciente. Adicionando as ideias de Sigmund Freud, Michel Foucault, Wilhem Reich e Carl Jung.
Desde 1990, tem se visto uma crescente atenção especial ao cruzamento e interseção entre as diversas linguagens, bem como ao fomento e discussões pertinentes ao circuito artístico e à comunidade. Essas experiências tornam possível entender a leitura de obras e linguagens diversas, propícias ao diálogo com o grande público. Pela descendência japonesa busco a interface entre arte, literatura e filosofia oriental em proximidade com as artes visuais (pintura em aquarela), além do que, o estudo e a prática do haicai brasileiro representa um convite ao aguçamento da percepção poética e, também, além de religar e os equilíbrios físico-espiritual com a natureza pelas filosofias do Taoísmo e do Zen budismo, uma bela possibilidade de diálogo entre as duas culturas.
Outro traço marcante na obra é o total desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que, no meu caso, caotiza-se, na tentativa de transpor para a poética escrita o ritmo sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz. Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de uma obra pontuada por cortes cinematográficos que remetem ao cinema experimental, com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. O verso livre, desprovido de toda e qualquer regra, será sempre um grito de liberdade neste contexto atual de sufoco, de repressão e retorno ao obscurantismo medieval, a falsa moral mesclada com o espetáculo bárbaro da tragédia do povo bombardeado e induzido ao consumo desenfreado através dos meios de comunicação. Um teatro da vida cruel mantendo espectadores passivos e sonâmbulos.
Na década de 80, a transgressão foi reforçada pela descoberta do outsider Pier Paolo Pasolini, protótipo do intelectual-profeta que caminha nas frinchas do paradoxo. No geral, tenho uma temática muito diversificada, que parte do urbano e quotidiano, passando pelo erótico e carnal, até atingir o metafísico e o sagrado.
O resultado geral é uma expressão poética fragmentada, que resume exemplarmente as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da contemporaneidade. Assim, os escritores da atual geração devem inaugurar traços singulares no contexto poético brasileiro, que fazem de suas obras uma das mais originais e inovadoras dentro da poesia brasileira contemporânea. Uso a referência do corpo e da transgressão, do poeta paulista Roberto Piva, como sempre esteve equidistante das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria escola. No espelho da literatura, a imagem do escritor de estilo é daquele que reflete, de modo nem sempre aceitável, os paradoxos da contemporaneidade, através dos seus próprios. Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração de silêncio da qual sua obra tem sido vítima. O silêncio dos professores e dos acadêmicos no descaso, um tipo de violência pelo verso novo contra o comodismo.
No mais, a poesia sempre vai ser uma arte minoritária, como a filosofia, e sem retorno financeiro e nem comprovação de status social. Ela não é criada por gente que apenas a lê – a sua leitura seria um dos pilares! – mas, sim, por pessoas que a vivenciam, por estarem possessos pela poesia e por incorporarem a fala xamânica da poesia!


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