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Cultura líquida das aparências (Parte 1)


A fluidez, a principal característica de líquidos e gases, diferente do sólido, ela não mantém a sua forma, de modo fácil. De maneira idêntica, a  cultura líquida escorre, esvai-se, respinga, transborda, vaza e inunda. Essas são razões para considerar a fluidez como metáfora adequada quando queremos captar a natureza do contexto, na história da modernidade. A cultura líquida se identifica com a vida precária, vivida em condições de incerteza constante, é uma sucessão de reinícios. Nessa vida e cultura, livrar-se das coisas têm prioridade sobre adquirí-las. É uma vida de consumo, projeta o mundo e seus fragmentos como objetos de consumo, ou seja, que perdem a sua utilidade enquanto são usados.
A vida líquida, uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna, em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação dos hábitos e rotinas, das formas de agir. A cultura líquida, assim como a sociedade, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo. Tudo é temporário, nesta cultura, para você melhor compreendê-la, é preciso retroceder ao período da solidez, que está associada aos conceitos de comunidade e laços de identificação entre as pessoas, que trazem a ideia de perenidade e a sensação de segurança. Na era sólida, os valores se transformavam em ritmo lento e previsível. Assim, tínhamos algumas certezas e a sensação de controle sobre o mundo – sobre a natureza, a tecnologia, a economia, por exemplo.
Com a popularização da internet ocorre um excesso de informações e de cursos de artes em geral, acarretando a banalização da cultura, e junto aos surtos de pequenas editoras que trabalham sob demanda. Colocando a cultura como produto supérfluo e suas implicações com a defesa de direitos, de comprometimento com a qualidade artística e com a área. Podemos citar a questão da indigência cultural aliada à subcondição de vida, muito presente no meio artístico de hoje, no Brasil. Pela falta de leis de amparo expõe a classe à invisibilidade e ao descaso da maioria dos políticos e secretários de cultura. Essa desvalorização e desestrutura trazem implicações nos valores políticos, sociais, econômicos, educacionais, de exercer a cidadania do personagem criado: o homem civilizado. Essas realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes, em instantes, os ativos transformam-se em passivos, e as capacidades em incapacidades. As condições de ação e reação tornam-se obsoletas.
Pela falta de ideologia e de movimentos culturais, o que predomina são projetos esparsos e sem impacto nas camadas mais carentes da sociedade. Visto que as poucas entidades representativas engessadas pelo academicismo, por não ter uma plataforma de trabalho, sem oferecer também a contrapartida aos que pagam mensalidade. O que chamo de destruição criativa. É a forma como caminha a cultura líquida. Aquilo que a criação destrói são outros modos de vida em sociedade e, portanto, de forma indireta, os seres humanos que os praticam. O que proporciona aos produtores culturais a reflexão, a sensação de insegurança e o descrédito, dentro de um poço sem fundo, a dissipar alguns preconceitos criados por uma elite minoritária, incluindo a cobrança de políticas culturais, como vemos até hoje o plano de cultura enterrado, para mostrar exemplos como o turismo social e religioso em algumas cidades do interior paulista, do espírito de empreendimento, de cooperativa, de confraria e de liberdade que poderia ofertar a autonomia dos municípios se livrando da dependência tutelar do Estado, de triunfar pela ousadia em acreditar, para encorajar ao otimismo, advogar contra a exclusão, a tolice e a mediocridade.

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