A busca pelo
companheirismo sempre foi a urgência de muitos criadores e fez surgir
movimentos artísticos e literários. A efervescência de determinada época, as
coincidências e as amizades levam artistas ao convívio entre iguais e
incrementa e, por vezes, até modifica o trabalho solitário de cada um deles.
As reuniões no
apartamento da escritora Gertrude Stein
na rue de Fleurus,
na rive Gauche em Paris, na década de
20, reunia talentos do calibre de Pablo Picasso, Apollinaire e Jean Cocteau.
A revista Cahiers du Cinéma
na década de 60, também em Paris, juntava em sua redação diretores de cinema
como Jean Luc Godard e François Truffaut.
Nos anos 60 e 70, em
Presidente Prudente, apesar da “caretice letárgica” que pairava nos ambientes,
como o baile das debutantes nos clubes sociais, no grupo de escoteiros mirins, nas
comunidades de jovens, de cursilhistas e de catequistas, manipulados pelo
ideário da Igreja e da revista Família Cristã. Complementavam o marketing as músicas
gravadas nos vinis do Padre Zézinho, com conteúdo católico, e o conhecido programa
diário de rádio “A Hora da Ave-Maria”, às 18 horas, e sua visão teocêntrica, do
Deus severo, vingativo, punitivo e soturno. Uma fórmula de impacto emocional muito
divulgada, principalmente, no interior paulista, além das regiões norte e
nordeste. Assim, era a ordem do dia: Os jovens daquele período só podiam
namorar, no sofá da sala, monitorados pelos pais, por alguma prima ou pela tia
solteira, até às 22 horas. Eram estratagemas da cultura do medo em todos os
setores, sob o olhar silencioso do regime ditatorial.
Sem paralelos e exageros,
isso aconteceu em São Paulo, entre as décadas de 60 e 80. No meio do regime
repressivo brasileiro, São Paulo abrigava a vanguarda em várias searas
artísticas. Na música com Arrigo Barnabé, Ira!, Itamar Assumpção, Titãs,
Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Aguillar e a Banda Performática,
Hermelindo Neder & Footbal Music Band, Ratos do Porão, Garotos Podres,
Inocentes e Joelho de Porco. No teatro, com José Celso Martinez, Antônio
Abujamra e Antunes Filho. Nos quadrinhos, Angeli com sua revista Chiclete com
Banana, a Lodo do Marcatti, além de Animal, Níquel Náusea, de Fernando
Gonsales, e Geraldão, do Glauco. E, na literatura, a turma dos ‘beats
paulistanos’: Roberto Piva, Cláudio Willer, Roberto Bicelli, Antonio
Fernando de Francheschi, entre outros.
Em belo trabalho de
pesquisa (40 entrevistas entre 2007 e 2010), o livro Os Dentes da Memória,
de Camila Hungria e Renata D’Elia, narra em formato de longa entrevista as
histórias da vanguarda poética paulistana. Os excessos, os causos e os arroubos
do grupo são contados principalmente com base nos relatos dos dois principais
poetas dessa geração: Roberto Piva e Cláudio Willer.
O intenso Roberto
Piva exercia uma espécie de liderança anárquica no grupo. Verborrágico, vivia
segundo seu lema: “eu digo que o verdadeiro poeta é marginal”. Cláudio Willer,
mais centrado (dentro do possível), adota tom mais lúcido em suas lembranças.
Willer foi o tradutor
da obra que realmente fez a cabeça dessa geração, Cantos de Maldoror, o
genial livro do enigmático poeta Lautréamont. Apesar da profunda admiração dos
poetas do período pelos escritores beats norte-americanos, o uruguaio Lautréamont traduziu como poucos a
atmosfera dos sixties: “recebi a vida como uma ferida, e proibi ao
suicídio que curasse a cicatriz.”
O clima desses artistas pode ser experimentado pela leitura do manifesto “Bules,
bilis e bolas”, publicado por Roberto Piva:
“Nós
convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A vida não
pode sucumbir ao torniquete da Consciência. A Vida explode sempre no mais além.
Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso não ter medo de
deixar irromper a nossa Alma Fecal. Metodistas, psicólogos, advogados,
engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós
deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública, quem precisa
disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a
Liberdade.”
No papel de agregador
do desregrado movimento figura o editor Massao
Ohno. Sua pequena editora publicou muitos primeiros livros de alguns escritores e poetas. Como ele
próprio explica: “não se tratava de uma editora que modificasse as normas
vigentes. Havia somente a necessidade de criar uma nova maneira de divulgar
trabalhos pioneiros. Assim surgiu a Coleção
dos Novíssimos, para publicar gente que desse um perfil próprio à sua
época.”
Em plena ditadura militar, Roberto Piva
polemizava com os poetas identificados como de esquerda e os poetas concretos.
Piva também chegou a defender o anarco-monarquismo e, nos anos 90, a declarar
apoio ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sem papas na língua, Piva
comete heresias imperdoáveis aos esquerdistas empedernidos, a esquerda foi mais
repressiva que os militares. Eles tinham a hegemonia da intelectualidade….
flertei com todas as correntes que eram contrárias à ditadura. Mas você não
precisava ser marxista para ir contra a ditadura.”
O escritor João
Silvério Trevisan resume bem o pensamento político de Piva: “o Piva se desdiz
com certa frequência. Mas isso não quer dizer que ele seja incoerente. Sua
maior coerência é justamente ter sido fiel a não separação entre poesia e vida.
Essas falas e opiniões extremas são parte de uma irresponsabilidade criativa
poética que ele próprio considera importante em si mesmo”. Willer ainda
complementa sobre as contradições políticas do amigo: “em matéria de política.
Piva sempre foi de uma oscilação notável.”
Sempre mais comedido,
Cláudio Willer se embrenhou na política cultural e exerceu cargos públicos, a
partir dos anos 80, como assessor do Ministério da Cultura (Minc) e outros,
além de ter ocupado por 4 mandatos a presidência da União Brasileira dos
Escritores (UBE).
Em 2010, a vida
segundo Eros de
Piva encontra Tânatos
em péssimas condições: “aos 72 anos, tremendo e com alguma dificuldade para
ler, estava cada vez mais difícil complementar o orçamento. Sem convênio
médico, Piva contava com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com a ajuda de amigos
para bancar seu tratamento”. Eis o retrato da indigência cultural que vem
dizimando, durante séculos, grandes expressões da cultura desta nação. Recordei
do triste fim de um dos maiores críticos literários desse país, Leo Gilson
Ribeiro, pois também precisou da ajuda de amigos nos seus últimos meses. A
falta de dinheiro maltrata até o fim quem se dedica de alma aberta à
literatura no Brasil.
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