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Livro objeto poético

Migração 1 (2006), de Fábio Morais




A singularidade que diferencia e distancia o livro de artista de todos os gêneros, números e graus de livros que existem, desde o início de sua história na civilização, paradoxalmente o aproxima do universo de todos os livros: literários, filosóficos, científicos, técnicos, além dos dicionários, enciclopédias, histórias em quadrinhos, magazines, revistas e impressos de toda ordem.
Essa aproximação se dá, singela e superficialmente falando, justamente pelo fato de o livro de artista ser um livro que se assemelha a forma-livro, num primeiro instante e, o que os diferencia entre si, substancialmente, é que os livros em geral, cumprem a sua vocação ou destino de serem livros “funcionais”, isto é, livros que abrigam conteúdos independentemente de seu suporte, mesmo, que tenham sido concebidos de modo cauteloso e sensível – seja pelos artesãos, escribas e designers de todas as épocas.
No livro “funcional”, o suporte parece um contêiner isento, ausente de si mesmo, cuja forma e materialidade estão ali para agarrar, fixar e preservar memórias ou estender, alongar e projetar imaginários. Diferentemente do livro de artista cujo suporte, na sua essência, se torna um espaço poético do “aqui do onde” e do “agora do quando”. Isso quer dizer que no livro de artista o “suporte” registra a temporalidade que se atualiza a cada instante em que o livro é lido, visto, tocado e manuseado. E assim, o tal “suporte” deixa de suportar depósitos gráficos para ser uma superfície extensiva, folhas “quase cinema”, um campo de aterrissagem para sinais transitivos, com alta voltagem poética.
As possibilidades conceituais/formais, que se entreabrem a partir da investigação do livro como objeto poético, desenham um arco extenso de experimentações, congregando o conhecimento artesanal aos processos industriais, potencializando a mixagem de várias linguagens e modalidades de registros visuais e literários, multiplicando a descoberta de estruturas narrativas dadas pelos entrelaçamentos inusitados entre a palavra e a imagem. O livro de artista nos convida para caminhar nessa paisagem feita de campos de cultivo híbridos, sugerindo o convívio das diferenças.

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