(Segunda Parte)
Introdução
Este
ensaio pretende abordar as influências da filosofia do trágico e do absurdo camusiano na obra de Marly de Oliveira,
mais especificamente nos livros A força
da paixão e A incerteza das coisas (1984).
O estudo pretende exibir como a poesia de Oliveira, a partir do livro Contato, não só no trabalho com a
linguagem, mas também na tendência filosófica pré-anunciada em livros
ulteriores se mostra amplamente. Ao publicar Contato concretizam-se preocupações como a vida e a morte, a
passagem do tempo, a alienação, a perda de noção de indivíduo. Um olhar
amadurecido direcionado ao humano e suas relações. Desse olhar resulta um
discurso contraditório que diz e depois desdiz, feito por antíteses e
paradoxos. Tendo isso em vista, os livros a serem analisados no ensaio foram
selecionados por se constituírem belíssimas amostras de jogos poéticos e de
questionamentos sobre o homem e o mundo. Para isso, pensadores do trágico
moderno e a filosofia de Albert Camus
são utilizados como suporte teórico para o referido estudo.
O
trágico
Marly
de Oliveira inclinou-se ao trágico, especialmente, àquele que Camus nomeou como
absurdo. Implicitamente, a poeta preenche suas obras com a filosofia camusiana e com outras formas
filosóficas do trágico. Logo, pode-se dizer que a autora faz de sua poesia
fonte de nutrição ao sentimento do trágico.
Verdadeiramente,
de tempos em tempos, há o retorno do tema da tragédia e do trágico. A tragédia,
que traduz a mudança de propostas políticas e legislativas na antiga Grécia,
reencontra espaço a partir de seu fruto, o trágico. Apesar de várias mudanças
quanto à perspectiva de análise, o trágico se espalha pela modernidade de
várias maneiras.
O
trágico assumiu, na modernidade, sinônimo de ocorrência desastrosa,
catastróficas, eventos tristes. Acontecimentos de grande extensão tanto em
vítimas quanto em abrangência são batizadas por tragédias bem como massacres e
chacinas. Em um âmbito particularizado, a perda de algo estimado, de uma
pessoa, seja por morte violenta ou não, perdas em geral, ocorrências tidas como
“ironias do destino” também se caracterizam acontecimentos trágicos ou
tragédias.
Os
meios de comunicação têm verdadeira afeição pelas palavras “tragédia” e “trágico”.
Perdeu-se a forma da “tragédia” e a acepção originária, mas ficou o espírito
dela transformado em modo de existência, em filosofia. Por isso: nomear o
trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto, cair em uma rede de
incertezas, ser levado através de um Dédalo a procurar até mesmo linguisticamente
figuras recompositivas de um conflito (...) que apazigúem temporariamente o
perturbante contato com o extremo.
Dentro
deste raciocínio, o trágico não mais se percebe somente como uma encenação,
tornou-se pensamento e forma de se pensar. A experiência universal da dor, do
conflito extremo constitui a modernidade.
Acredito
que o trágico se manifesta como o desmoronamento de uma situação plenamente estável
e confiada. Em outras palavras quando se destrói a razão de uma existência
humana, quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico {...},
há no trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe.
Para
Vecchi (2004), o conflito entre as realidades permanece na impossibilidade de
um acordo de paz. Staiger (1974, p.148) menciona que o “trágico {...} não frustra apenas um desejo ou uma esperança casual, mas
destrói a lógica de um contexto, do mundo mesmo”. Chega-se, dessa forma, à
mudez sobre o real, à impossibilidade de expressão, ao calar que alcança o
extremo através da morte. Mas, mesmo assim, o impasse não se resolve porque: o
conflito moderno é assim destinado a manter-se aberto, contradição flagrante
que não se fecha e não se resolve. A escrita configura formas que, porém, sendo
destinadas à insuficiência, devem por força investir nas mesclas, nos ornatos,
nos artifícios, para costurar algum sentido no tecido dilacerado do trágico
{...} Desse ponto de vista, a forma trágica configurável mostra essencialmente
a insuficiência de qualquer forma de trágica. No entanto, é um vazio {...} que
deixa os restos de uma presença que foi tentada e não vingou, sinal de um
esvaziamento, de um já era que é, na sua irrepresentabilidade, pensamento
ausente mais do que ausência de pensamento.
Houve
o declínio da tragédia devido a sua inadequação. Modernamente não se pode criar
tragédias moldadas pelas antigas. Não se têm mais homens inteiros como os
heróis da epopéia, o homem moderno é multifacetado. No trágico moderno a
realidade histórica vai substituindo o mito, o que implica como foi observado
que na tragédia clássica é o mito que representa o material da realidade. Assim,
mesmo com alguns elementos trágicos “atualizados”.
Atrás
da reciclagem de signos próprios da tragédia, se delineia uma preocupação que
se inflete na tentativa de recortar formas trágicas de uma modernidade irredutível
à mediação racional, à conciliação pacificadora que o “Aufhebung*”, apesar da colisão que também inclui, de fato subentende.
O conflito fica aberto, exposto em suas bordas cortantes, à procura de uma
forma trágica que possa dar conta dele em todo o seu porte (VECCHI, 2004,
p.120)
*Aufhebung.
Um termo alemão com múltiplos significados aparentemente contraditórios, usado
por Hegel em sua filosofia para descrever o processo dialético de superação. A
tradução mais comum na língua portuguesa seria “superação”, mas também pode ser
entendido como “abolir”, “preservar” e “elevar” simultaneamente. Em outras
palavras, a Aufhebung não se refere a negação de algo, mas
também a sua preservação em um nível superior, integrando o antigo no novo.
Podemos
sintetizar Aufhebung como um conceito central da filosofia
hegeliana que descreve um processo de superação que não elimina o passado, mas
o integra em um novo estágio de desenvolvimento, mais completo e rico.
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