(Terceira Parte)
Após
essa visão do trágico moderno, pode-se eleger alguns pilares que o sustentam; a
ambiguidade, o paradoxo, o sujeito – tentando o ser – a massa contra poucos, a
perda, a essência e a aparência, o conflito aberto. Pode-se sentir-se que as
engrenagens da máquina-mundo estão em atrito intenso.
Este
referido atrito que Albert Camus
falará em suas obras. Para ele, o trágico chama-se absurdo e, nesse meio, em
que o mundo cala-se diante do apelo, do desespero, que pensador ratificará a
necessidade de viver. Expondo ideias um tanto paradoxais, o filósofo afirma e
se questiona sobre “onde está o absurdo
do mundo? Será esse esplendor ou a lembrança de sua ausência? Com tanto sol na
memória, como pude apostar no absurdo? Espantam-se em volta de mim; eu também
me espanto, por vezes [...] Falar dele, em suma, vai levar-nos novamente ao sol”.
Marly
de Oliveira sensibiliza-se igualmente com o desajuste moderno. Ao tentar exprimí-lo,
a poeta revela traços camusianos em
sua obra.
O
trágico camusiano faz-se perceptível
nas obras de Marly de Oliveira. Esse
traço filosófico em Oliveira
percebe-se especialmente a partir de Contato
(1975), sua quinta obra. Albert Camus
revela o sentimento do trágico, pode-se considerar, desde seus primeiros escritos
como, por exemplo, O Avesso e o Direito (1995).
No
livro em questão, Camus apresenta
cenas da vida comuns carregadas de ironia, dor, sofrimento e angústia. Prima
por descrições, à vezes, tocadas pelo veio Naturalista, devido ao asco que
certos detalhes chegam a provocar. No meu ponto de vista, o livro é um poema de
morte e solidão, confrontadas com a luz do mundo [...] Parte [do livro] seria
uma ilustração do ser-para-a-morte de Martin
Heidegger, pois a morte deixa de ser último fato, e é [...] estrutura
permanente de nosso ser.
Apesar
de escrever tais histórias ainda muito jovem, Camus deixa implícito o que irá nortear seus escritos posteriores,
especialmente, o fato de viver, o valor legado a isso, mesmo em condições não
muito agradáveis e a grande mudez do mundo frente aos apelos humanos. E
argumento que torna-se o grito da carne e dos sentidos, que ele (Camus) escuta, sempre recomeçado e cada
vez único.
Marly de Oliveira
constata a crueldade mundana a partir de sua quinta composição, Contato (1975). Este marca o início da
caminhada através das agonias humanas frente a um ambiente hostil e silencioso.
Entretanto, Marly demonstra claramente a influência exercida por Camus em Invocação de Orpheu
(1979). Nele, a questão do absurdo é extremamente arrolada, especialmente da
maneira como Camus tratou do assunto
em O Homem Revoltado (1963), Bodas em Tipasa (1964) e em O Mito de Sísifo (2007).
Sísifo
é visto por Camus como um herói
absurdo, porque ser consciente de seu infindável castigo: rolar eternamente uma
pedra ao topo da montanha e quase alcançando o mesmo, a rocha rola ao pé do
monte. Orpheu parelha-se a Sísifo.
Fora as diferenças, Orpheu obstina-se
por viver e reviver Eurídice, mas
perde a esposa para sempre e ganha a morte ao prenúncio de conseguir a façanha.
Em O Mito de Sísifo, Albert Camus apresenta indícios do conceito do absurdo: “o absurdo comanda a morte” (CAMUS, 2007,
p.22). O filósofo fica plenamente a favor da vida e acredita que nada, nenhuma
moralidade justifica as “matemáticas
sangrentas que ordenam nossa condição” (CAMUS, 2007, p.30). Por outro, se
nada justifica uma convivência desumana, o suicídio apesar da situação
miserável, não seria a saída, nem solução para o absurdo.
Para
Albert Camus (2007), uma das maneiras
do nascimento do absurdo se dá quando o homem inicia a busca por respostas ou
por algo que lhe preencha e que não é encontrado. “Se expressar aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloquente
[...] em que o coração procura em vão o
elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo” (CAMUS, 2007,
p.27).
Camus reconhece que o
homem, um ser naturalmente contraditório. Mas uma das piores contradições
humanas seria viver esperando pelo amanhã. Afinal, a efemeridade espreita a
vivência humana e é bastante provável que não se alcance o futuro para realizar
algo planejado. Sendo assim, o filósofo valoriza o viver um dia por vez,
realizar hoje o que puder. Camus
exprime o conceito de Carpe diem.
Se recuso obstinadamente todos os “mais
tarde” do mundo, é porque se trata em verdade de não renunciar à minha riqueza
presente. Não me agrada acreditar que a morte se abre para outra vida. Para mim
é uma porta fechada. Não digo que é um passo que cumpre dar e sim que é uma
aventura horrível e suja (CAMUS, 1964, p.18).
Entretanto,
o pensador reconhece que o mundo escapa à compreensão humana. “O mundo nos escapa porque volta a ser ele
mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são.
Afastam-se de nós” (CAMUS, 2007, p.29). O homem seria capaz de entendê-lo
se pudesse torná-lo humano, familiar. Justamente por não ter essa capacidade,
ocorrem contradições entre o que há um instante lhe era próximo e agora não.
Camus resgata, assim, o
jogo entre aparência e essência associando-o ao pensamento absurdo. Dessa forma,
torna relativa a verdade, porque “com
exceção dos racionalistas profissionais, desistimos hoje do verdadeiro
conhecimento” (CAMUS, 2007, p.32). Não há verdade absoluta perante ao
pensamento absurdo. Quanto ao homem, o filósofo afirma que “não é tão fácil a gente tornar-se o que se
é, reencontrar sua medida profunda” (CAMUS, 2007, p.09). Por outro lado, “não há fronteiras entre o que um homem quer
ser e aquilo que é” (CAMUS, 2007, p.93).
Então, o que mantém os opostos: mundo e
homem, aparência e essência; dialeticamente unidos? Para Camus (2007), seriam
os laços de ódio, pois, “o absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por
ora, é o único laço entre os dois. Ele os adere um ao outro como só o ódio pode
juntar os seres” (CAMUS, 2007, p.35).
Mesmo
assim, pior que uma vida absurda é não ter vida, ou seja, apesar de o mundo se prostrar mudo diante da fala
humana, pior é deixar de nele existir. Sabe Camus
que o destino humano processa-se na oposição e exige coragem. Assim, o suicídio
encarado como o grande problema filosófico, pelo menos na modernidade, é visto
como uma fuga covarde e imprópria.
Se o
trágico constatado refere-se a própria realidade, a fuga do trágico torna-se o
subterfúgio da realidade. Logo, um suicídio. O suicídio torna-se a escapadela
da confrontação entre os dois termos que realizam o absurdo. Não só a morte que
me dou, negando a consciência, mas também a concordância com o real, a procura
de justificação, no irracional, para a realidade.
Percebe-se
a ação imprópria do suicídio, quando se visualiza o absurdo como um
despertador, que tem por função acordar o homem da alienação que sofre. Não é o
fim, mas o início, pois a partir do momento em que ele percebe sua condição
medíocre e maquinal, impulsiona-se por modificá-la. Assim, surge o absurdo.
Sendo
o absurdo a atitude contrária a toda forma de resignação, eis porque Albert Camus recusa a esperança. Aquele
tipo de esperança que consiste em aguardar a melhora de algo futuramente.
Também em acomodar-se com tal espera, “pois
a Esperança [...] equivale à resignação. E viver não é resignar-se” (CAMUS,
1964, p.33).
O
absurdo é justamente o não acomodar, não esperar pelo futuro nem se resignar. O
absurdo torna-se uma ação contra um estado de coisas tacitamente aceitas que
geram alienação, morte, violência e exploração de inocentes. Enfim, escolher
realmente por uma forma ativa de vida. “Há
o bem e o mal, o vencedor e o vencido [...] mas mudar as coisas de lugar é
tarefa dos homens é preciso escolher entre fazer isso ou nada” (CAMUS,
1964, p.65/69-70).
Camus considera a vida
somente na Terra, pois nesse “grande
templo que os deuses desertaram, todos os meus ídolos têm pés de barro”
(CAMUS, 1964, p.47). Não cabe esperar por uma providência divina nem aguardar
por uma vida celestial que recompense os sofrimentos terrestres, pois “os
deuses desertaram” a terra. Guimarães (1971) escreve: é impossível negar o mal,
em uma atitude agostiana, pois ele se
faz presente como uma realidade irrefutável, “A lucidez exige a aceitação do mal, mesmo que implique na rejeição da
divindade”. (GUIMARÃES, 1971, p.33). Dessa forma, cabe ao homem desejar
saber de seu caminho.
E
esse, ao mesmo tempo, seu grande pecado, assemelhado ao de Édipo. Desejar
saber, “este justamente é o único pecado
do qual o homem absurdo pode se sentir ao mesmo tempo culpado e inocente”. (CAMUS,
2007, p.61-62. Mas o mal, torna-se também a dor da solidão e morte, coloca o
homem diante de si. Percebe-se então que o mal provém do próprio homem. Resta
ao mesmo superar esse entrave. Dessa forma, a grande tarefa camusiana é a da superação do absurdo, o
que não quer dizer sua eliminação.
Assim,
o absurdo configura-se como escolha consciente pela vida. Mesmo não agradável,
precisa-se amá-la. Tem-se uma esperança de enfrentamento à situação de abandono
quando se opta pela vida. Essa constituída livre de símbolos e convenções. Daí
Camus (1964, p.51/46/72) afirmar que:
Para compreender o mundo, é
preciso por vezes afastar-se dele: para melhor servir os homens, mantê-los
durante um momento à distância [...] Sentimos que se trata no caso de
empreender a geografia do deserto. Mas esse deserto singular só é sensível aos
que são capazes de nele viver sem jamais enganar a sua sede. É então, e só
então, que ele se povoa das águas vivas da felicidade [...] a inocência precisa
da areia e das pedras. E o homem desaprendeu de viver aí.
A
necessidade de distância relaciona-se à vida livre de convenções e simbologias.
Entretanto, necessita-se tomar distância e recorrer, até mesmo, à aridez a fim
de que se torne visível a situação alienadora e de desamparo, na qual os homens
vivem. Quiçá, recuperar a essência da existência sem maldade, violência, morte.
Essa, especialmente, é o grande espetáculo à felicidade ôntica humana.
A
poeta Marly de Oliveira também recorre ao deserto para provar do amor e dos
bons sentimentos: “na solidão/ tão árida
do deserto/ é que se prova a esperança” (OLIVEIRA, 1988, p.75). É da
esperança camusina que Marly se refere, não a esperança que aguarda
simplesmente, mas que age para que algo aconteça. Oliveira compartilha do fato
de que, vez ou outra, faz-se necessário despojar-se das coisas para alcançar
algo melhor nesta existência.
Albert
Camus (1964, p.41/42) ao relatar sobre homens religiosos que abnegam riquezas e
optam pela pobreza, justifica a opção ressaltando que “esse esplendor do mundo [...] parecia-me que era como a justificação
daqueles homens [...] Se se despojam é para uma vida maior (e não para outra
vida)”. (Camus, 2007, p.106) afirma ainda:
A
imaginação pode acrescentar muitos outros, ancorados no tempo e exílio, que
também sabem viver à medida de um universo sem futuro e sem fraqueza. Este
mundo absurdo e sem deus mostra-se povoado então por homens que pensam com
clareza e não esperam nada.
Percebe-se
que Marly de Oliveira comunga das ideias
de Albert Camus. O paradoxo, a
contradição, a inexistência de uma entidade superior capaz de salvar os humanos
da mudez e crueldade instalados no mundo. Todos esses princípios são vistos em
suas poesias a partir de Contato e
perpetuados nos livros ulteriores. Camus imprime uma ideologia muito forte em Marly. Como o filósofo, Marly acredita e deixa essa idéia em
seus poemas que “só há uma ação útil,
aquela que recriaria o homem e a Terra. Eu jamais recriarei os homens. Mas é
preciso pensar “como se” (CAMUS, 2007, p.102). Por isso, Marly insiste
tanto na necessidade de mudança, de perspectiva diante do mundo.
Tanto
a mudança de atitude quanto assumir que o homem é feliz ontologicamente é
preciso. Camus ressalta que “não há
vergonha em ser feliz. Mas hoje o imbecil é rei, e chamo imbecil aquele que tem
medo de gozar” (1964, p.11) porque para ser feliz, é necessário trazer
dentro de si a revolta. Revolta que se prostra contra tudo que é capaz de
ferir, matar e oprimir o homem.
Marly
deixa implícito em suas obras a necessidade de ser feliz, porém, não a
demonstra de forma a contemplá-la em seus “enredos poéticos”. Os eu líricos
sempre estão na ânsia de consegui-la. Apesar de expressões diferentes para a
mesma busca, tanto a poeta quanto o filósofo são unânimes sobre a importância
da felicidade para o homem, durante sua existência terrena.
Mesmo
assim Camus sabe da possibilidade de felicidade, mas existe a morte. Sem
dúvida, o maior calar do mundo à natureza humana. Mas o absurdo disso, “não é esta constatação da brutalidade [...].
Mas é a constatação violando o meu desejo de vida”. (idem, p.32). Não seria
absurdo se não houvesse o conhecimento que em oposição à morte há vida. Daí, a
necessidade de amar a vida e inteirar-se dela como um todo, aproveitando, em um
casamento perfeito, ao máximo o que a natureza oferece, passando por cima da
dor. Marly de Oliveira também encerra
esse desejo.
Torna-se
relevante lembrar que a felicidade humana, tanto para Camus quanto a Marly,
valida-se na medida em que todos os homens são capazes e podem ser felizes. Entretanto,
se um sofre, a felicidade se extingue também aos demais. Porque “sim, diz Rambert, mas pode existir vergonha em
ser feliz sozinho. Creio que aqui são enunciadas as palavras de solidariedade e
a razão da revolta. Daí, nos poemas marlianos,
principalmente em Invocação de Orpheu (1979), existirem vozes em
uníssono proclamando e clamando a união dos homens em busca de seus direitos,
em especial, a felicidade.
Pode-se
constatar, então, que o absurdo mostra-se um ponto de partida e não um estado. Transformar
um sentimento em estado será a negação de qualquer saída e concordar com o que
oprime. Fazer do absurdo uma regra de vida é viver no desespero. Mas, há a
necessidade de se recorrer à lucidez e essa traz à tona ao homem que a tem,
sendo perecível e maquinal, por ter uma rotina infindável, tal como Sísifo. E indago qual seria o sentido da
vida para esse homem?
Terá
algum significado, conforme a ideologia
camusiana, quando esse homem admitir que para viver e chegar a felicidade
dessa vivência necessita de três verdades: ausência total de esperança, recusa
contínua do real que se nos oferece e insatisfação consciente. Porque o mundo
não tem sentido humano e, nem podemos compreendê-lo. O homem lança seu grito ao
mundo embalde. Ele não se deixa abarcar pela racionalidade e contraria toda
ordem e clareza que queiramos irromper.
O
homem dito absurdo procura a relação entre a inteligência que constata a
angústia em um mundo surdo. Essa relação se mede pelo absurdo. Feita tal relação,
o homem absurdo aceita, mesmo que angustiantes, as certezas relativas
encontradas.
Num
mundo sem sentido, permanece a exigência humana de sentido. Nada pode ser feito
para satisfazê-la. Sou obrigado a manter o caos reinante, mas este caos, este
inferno, é meu lugar. Assim me imponho frente a uma realidade que me contraria
e frente qual sou impotente. O confronto do homem com a realidade favorece o
mesmo. Na condição de inocente, o homem absurdo tem que viver, sem apelo, sem
esperança. Outra vez não anulará problema. A tentação seria a negação da
consciência: o suicídio. Porém, um absurdo que nasceu da consciência tem que
viver como verdade, logo, viver na consciência. Seria possível viver sem apelo?
A
revolta torna-se responsável por manter o espírito consciente e dar ao homem a
noção de realidade. Mesmo sendo uma negação, a revolta está plena de afirmação
de um outro ponto, de uma perspectiva. Portanto, nesse ambiente de conflito,
mas nunca de desistência, que Albert
Camus e Marly de Oliveira exibem seus
escritos.
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