(Quarta Parte)
À
procura de formas o trágico acabou por se adaptar a forma literária escolhida para
se manifestar, desligando-se, assim, do conceito puro de tragédia, pautando-se mais
na fenomenologia literária do mesmo.
O
trágico não pode ser pensado através de uma reconciliação racional, mas da
exposição dos extremos. A tragédia deve ser tomada como modalidade de apreensão
artística do espírito do trágico, em um âmbito geral. Ao se tentar escrever
pretende-se expor justamente aqueles conflitos que se agitam no interior da
realidade moderna e de que o sentido do trágico se alimenta.
Pode-se
dizer que na concepção moderna o trágico é o conflito apresentado como chaga. Compara-se,
de certa maneira, o herói da tragédia grega e a pessoa comum moderna: a
vontade, para ambos, não se modificou ao longo, de mais ou menos, vinte e cinco
séculos. Se para o herói não havia “vontade”, visto que esse pensava agir por
sua escolha, mas, não o era; hoje, não obstante, a vontade recobra esse valor,
ou seja, não se pode falar em vontade pertencente à pessoa comum, personagem
desse ambiente trágico construído e mantido, por exemplo, pelo sistema
econômico, pela questão margem e centro, a melancolia, o não-sujeito. Ainda
mais no Brasil que esse fenômeno assume um relevo ainda maior, portanto, mais
trágico em um contexto periférico que atravessou a experiência colonial, onde
as formas foram em geral oriundas de outros contextos e a vida muito mais
irredutível pelas palavras outras: um trágico no trágico.
Tem-se,
então, o trágico como dialética para vida, para as relações interpessoais. Tropeça-se,
assim, em outro obstáculo: o indivíduo. Na tragédia antiga, o fato de se elevar
o indivíduo em detrimento da comunidade, desencadeava todo o processo da
tragédia culminando, geralmente, com a morte do herói. O grande óbice,
atualmente, é delimitar, individualizar as pessoas para que sejam realmente
indivíduos. Na modernidade, é cada vez mais difícil calcular a medida do
indivíduo, uma vez que a própria noção de “si mesmo” já parece melancolicamente
anacrônica.
A
atual conjuntura social valoriza tudo e todo aquele detentor de certo poder, status quo, junto dela proclame convincentemente
que não há o porquê do trágico. Em contrapartida, várias pessoas, em sua
privacidade e, na grande maioria, em vasta miséria sofrem a tirania desse grupo
e sentem todo o peso da realidade trágica. Assim, para amenizar o despotismo há
uma máscara cômica que a sociedade usa. Exatamente o anti-trágico. Para Adorno:
Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa,
todos podem se tornar felizes desde que se entreguem de corpo e alma, desde que
renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece a
sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os
como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Outrora, a
oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela
glorificava a “valentia e a liberdade do sentimento em face de um inimigo
poderoso, de uma adversidade sublime, de um problema terrificante.” Hoje, o
trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do
sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do
trágico (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.144)
Essa
aparência nula do trágico esconde a real situação de alienamento e descrença da
maioria da população que, enfeitiçada pela facilidade com que é proposta a
vida, deixa-se levar. Gumbrecht
(2001) relata que na modernidade não há mais paradoxos. Há descomplicação
acerca de tudo:
Encontramos, confrontados com um espaço
público quase completamente tragicofóbico ( a anulação do trágico levantada por
Adorno) – e uma esfera privada frequentemente tragicofílica. As sociedades
contemporâneas certamente fornecem instrumentos poderosos de desparadoxificação,
ou seja, instrumentos que lhe permitem remover todo e qualquer potencial de
tragédia do espaço público. [...] Há realmente toda uma indústria altamente
diversificada (e cada vez mais global), que oferece [...] artifícios de
desparadoxificação que evitam a tragédia [...] Você está convencido de que é
“uma mulher”, a despeito de seu corpo masculino? Uma cirurgia transexual vai
fazê-lo sentir-se bem melhor. [...] mesmo para quem não pode pagar essas
técnicas, o que antes era uma “situação trágica” passou a ser um problema
prático de criar para si uma história de crédito e de encontrar o mercado de
dinheiro apropriado. A única limitação “trágica” que ainda não desapareceu é
realmente a morte. (GUMBRECHT, 2001, p.15-6)
A
“desparadoxificação” recai sobre o poder do dinheiro. Diante da situação
apresentada, não há necessidade de crise de nenhuma ordem, porque tudo se
apresenta como comprável, inclusive a decência. Ninguém precisa furar os olhos
porque cometeu algo hediondo, mesmo sem saber, como Édipo. Hoje, a cegueira domina.
Aliás,
o cego bem como a cegueira perfazem a ambiguidade trágica. Na tragédia antiga, o
homem tomado pela cegueira daimõn
(delírio, loucura) não possui noção exata de seus atos. Passado esse momento,
ele enxerga a desgraça em que está. Por outro lado, existe, envolto por certo
ar místico e surpreendente, a figura do cego que tudo vê, personificado por Tirésias, o mais afamado vidente,
seguido por Cassandra e outros. Ginzburg (2004, p.92-3) levanta duas
maneiras para se abordar a cegueira, numa reflexão teórica e estética. Mesmo sendo
um assunto muito complexo:
Ele pode ser tratado em pelo menos dois
aspectos. O primeiro é em uma abordagem mais indireta, pensando a cegueira como
metáfora. Nessa linha, tomando as referências da tradição, a representação da
cegueira é associada conotativamente aos limites do conhecimento, à ilusão, à
incerteza. O segundo, ainda mais delicado, consiste em pensar a cegueira não
como metáfora, mas como uma forma específica de experiência, caracterizada pelo
limite, pela exposição do ser humano à fronteira do inumano, da
incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em uma condição trágica.
Têm-se
as duas maneiras: pessoas relegadas ao inexprimível, pessoas massificadas. Não
é mister perfurar os olhos e sair a vagar porque, conscientemente, faz-se
atrocidades contra uma nação toda, e ainda há possibilidades de justificá-las,
livrando o praticante de qualquer julgamento efetivo. Esse não se interessa
pelo impacto que sua atitude poderá causar nos outros, está preocupado em sair
ileso. Parece que, realmente, a ilusão do progresso e da felicidade para todos
esmeram-se em camuflar a face do trágico. Atos de uma sociedade tragicofóbica.
Dentro deste raciocino explícito que o sentimento aqui em questão não é igual a
“nos expor” ao pensamento e à visão das tragédias dos outros e às mortes dos
outros. Na verdade, gostamos mesmo é de vê-los sofrer e morrer. A razão desse
desfrute, seria ela de cunho altamente – ou puramente – estético? A saber que,
mais ainda que os espectadores das tragédias de Sófocles, estamos vivendo num espaço público e numa esfera privada
onde absolutamente tudo é suposto como sendo “negociável”, o que significa que
tudo é suposto como sendo contingente, ou seja, nem necessário, nem impossível.
Essas
palavras reforçam que, quem detenha o poder. Inclua-se o poder de compra, fará
valer sobre quem não detém ou não resistir. O jogo de “aparência x essência”
nunca desapareceu. Há um trágico nulo aparentemente, porque a encenação desse
perdura na sutil troca de máscaras, na ribalta das relações sociais, na ironia
cortante, na máscara cômica que esconde a face trágica do real, em favores
devidamente recompensados, em atos que visando o bem pessoal, não lembram em
nada a preocupação com o coletivo, como na tragédia antiga. Em um tempo que o
supremo valor e derradeira meta dos mais poderosos indivíduos humanos se
tornaram “sobreviver politicamente” (e acredito que havia algumas razões para
admitir esses indivíduos por fazê-lo), talvez não possamos deixar de ter saudades
dos heróis capazes de morrer elegantemente – pelo menos no palco.
Diante
dessa “exposição de extremos”, a literatura tenta se situar. Esforça-se para
exprimir o que não é exprimível: os paradoxos que mantém o trágico, que se
tornou ontológico. Às vezes, alguns literatos não conseguem isso, construindo
cenas horrendas, não trágicas como observa Pfeiffer
(2001, p.62):
Em todo o caso, chama a atenção o fato
de que na literatura européia desde o século XIX quase não há mais formas de
catástrofe e de fracasso que se designariam como trágicas. A literatura tem
grande dificuldade de conferir grandeza e inexorabilidade a conflitos entre
indivíduos e a sociedade. Talvez a literatura que conhecemos em forma de livros
não seja, “per definitionem”, uma mídia para a tragicidade. Talvez, ela utilize
a aparência do trágico para sugerir perspectivas da complexidade cognitiva e
emocional pela qual somos assoberbados no cotidiano.
Todavia,
há que se levar em conta que não há forma definida do trágico. Outro fator
preponderante e já abordado, a questão da ascensão burguesa e o surgimento do
romance que traz “a catástrofe anestesiada [por um] ritmo envolvente.
Apesar
das divergências, a literatura aborda as sombras da vivência e ao falar da
sombra, afirmam-se a insatisfação com o que existe e persistência naquilo que
fica por dizer. Configura-se uma poética trágica. Não obstante, a escrita literária
reflete o sujeito dissoluto: dividido entre uma unidade que não o contém e uma
multiplicidade que o dispersa. Passa a expor as indecisões, as contradições
infinita do mundo moderno, os conflitos insolúveis que permanecem como tais,
interiorizando-se na consciência do indivíduo como aporia intrínseca à condição
dele.
Os
exemplos literários que possuem marcas do trágico, podem ser colhidos na
literatura brasileira: Os sertões, de
Euclides da Cunha, Canaã, de Graça
Aranha, A esfinge, de Afrânio
Peixoto, Finnazi-Agrò já lançou trabalhos a respeito do trágico em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Em Carlos Drummond
de Andrade encontramos marcas do trágico e há outro mais para serem analisados.
Após
essa visão do trágico moderno, pode-se eleger alguns pilares que o sustentam; a
ambiguidade, o paradoxo, o sujeito – tentando o ser – a massa contra poucos, a
perda, a essência e a aparência, o conflito aberto. Pode-se sentir-se que as
engrenagens da máquina-mundo estão em atrito intenso.
Desse
atrito que Albert Camus falará em
suas obras. Para ele, o trágico chama-se absurdo e é nesse meio, em que o mundo
cala-se diante do apelo, do desespero, que o pensador ratificará a necessidade
de viver. Expondo ideias um tanto paradoxais, o filósofo afirma e se questiona
sobre “onde está o absurdo do mundo? Será esse esplendor ou a lembrança de sua
ausência? Com tanto sol na memória, como pude apostar no absurdo? Espantam-se
em volta de mim; eu também me espanto, por vezes [...] Falar dele, em suma, vai
levar-nos novamente ao sol”.
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