“Peguei de novo o trem (o último por sinal) e algum tempo depois estava de volta ao necrotério. Tirei a jaqueta, deitei-me, resignei-me à minha irremediável condição de morto. Não tinha outra coisa que fazer.”
(“Morto, sem Dúvida”, Herberto Sales)
Percorrendo
caminhos que vão do convencional ao absurdo, a temática de Herberto Sales é
diversificada. Em todos os textos, porém, sejam romances ou contos, há um elo
de ligação, que define a proposta literária do escritor: a denúncia das deficiências
da sociedade contemporânea.
O
abuso de poder dos coronéis nordestinos, a vida precária dos garimpeiros e
madeireiros, a fragilidade de pessoas-mitos familiares, a estúpida burocracia
oficial e empresarial, as obsessões do ser humano, o consumismo alienante, o
estreito controle estatal sobre o indivíduo – estes alguns dos alvos da crítica
de Herberto Sales, que questiona, sem partidarismos, toda forma de degradação
humana.
Atento
observador da sociedade, Herberto capta com sensibilidade as várias linguagens
do povo, desde o simples falar de garimpeiros até o “idioma” dos jovens da
cidade. Pela maneira de se expressar de seus personagens ficam registradas suas
diferenças – culturais, regionais ou etárias.
Herberto
Sales acredita no ser humano e, por isso, sua crítica é construtiva, um alerta
para as consequências das falhas humanas. Às vezes pode ferir, quando diz suas
verdades. Mas não deixa de usar seu senso de humor, no momento oportuno.
Desmascaramento
da sociedade
Esse
fato o de causar no leitor do conjunto da obra de Herberto Sales, num primeiro
momento, uma sensação de estranhamento. Não parece ser o mesmo o escritor de Cascalho e de O Fruto do Vosso Ventre, tão diversa é a temática de ambos, mas sem
dúvida é aparentada a linguagem a sintaxe, o estilo. Além disso, ao leitor
atento não escaparão os caminhos internos da sua produção: a temática dos
romances é explicitada aqui e ali nos contos, os contos antevêm um romance
posterior, uns e outros apresentam uma unidade quanto ao sentido crítico em face
da realidade captada em pormenor.
Os
temas se entrecruzam, os expedientes formais são levados às últimas consequências.
A decadência presente no plano econômico, em Cascalho, é retomada na velhice de Dados Biográficos do Finado Marcelino; a linguagem bíblica esboçada
em uma das narrativas de O Lobisomem e
Outros Contos Folclóricos (“Lenda do
Amor Indígena”) é a grande sacada de O
Fruto do Vosso Ventre, em cujo capítulo final se descortina numa
representação apocalíptica, a solução para o disparate da burocracia limitadora
que, por seu turno, havia sido destacada em vários contos de livros anteriores
(por exemplo, “O Conselho”, de Histórias Ordinárias).
Crítica
e avaliação da vida
Todavia,
se nas mais simples histórias a crítica se faz presente e, muitas vezes,
revestida de grande mordacidade, mesmo nas narrativas mais contundentes existe
uma aparente equidistância que, avessa à compreensão mecânica do homem,
questiona todas as formas de degradação sem partidarismos ou idéias
apriorísticas. O narrador de Cascalho
não é mais piedoso com as injustiças cometidas pelos garimpeiros uns contra os
outros, do que com as praticadas pelos abastados senhores, castiga-os a todos
com sua crítica feroz, porém discreta, mediante o uso da ironia e da sutileza.
Em
outras oportunidades, retira do sem-sentido das situações a avaliação da vida e
de sua qualidade precária como ocorre nos contos de Uma Telha de Menos. Veja-se como, em “Morto, sem Dúvida”, a própria vida é contestada diante da
convencionalidade da morte ou, em “O Resgate”,
como os mais humildes são vergonhosamente ludibriados com autorização e
estímulo legal.
Do
absurdo das situações colhidas na realidade cotidiana para imaginação de
outras, ainda não ocorridas, mas que são as últimas consequências do atual
estágio da sociedade, é um pequeno passo, principalmente para quem está atento
às notícias diárias. Colocando-as sob análise e extrapolando para além do
imediato através da imaginação criadora, pode-se compor uma sociedade ainda
mais aterradora que as existentes, onde o espaço para a liberdade se limita
assustadoramente e a burocracia impera sem qualquer atenuante. É o que fizeram
Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo,
e George Orwell, em 1984 e A Revolução dos Bichos.
Alerta
contra realidades desumanas
Entre
nós, afora algumas tímidas tentativas como, por exemplo, a Fazenda Modelo, de Chico Buarque de Holanda (evidentemente metáfora
do Brasil sob repressão e ditadura), só Herberto Sales ousou navegar por mares
de hipóteses que, se são aterradoras em sua crueza, prestam-se ao alerta e, em
última instância, a que se impeça a continuidade de realidades tão desumanas.
A
denúncia está presente em toda sua radicalidade em O Fruto do Vosso Ventre e em Einstein,
o Minigênio, que têm sua origem em fatos como a explosão populacional, o
controle da natalidade compulsória e à margem dos interesses dos povos, os
bancos de sêmen, a produção genética de gênios, a construção de uma raça
superior etc. Mas, se esse é o quadro notório, o pano de fundo, que em absoluto
não escapa ao autor, é o próprio crescimento da sociedade capitalista,
burocrática e autoritária, de todas as nuanças ideológicas.
Crença
na humanidade
Ligado
profundamente ao neo-realismo das décadas de 30 e 40, Herberto Sales nunca
abandonou esses parâmetros em sua forma de escrever e abordar os assuntos mais
variados, tendo sempre por horizonte a crença na humanidade, algumas vezes
expressa, como no final de O Fruto do
Vosso Ventre, numa verdadeira declaração de fé, que, se é destituída de
qualquer mística religiosa, foi justamente a imagem dela que recorreu como
expediente literário.
Crítico
preocupado em remexer as mínimas chagas, jamais se descuidou da construção
rigorosa de suas narrativas, tanto de ponto de vista linguístico como do
estrutural, o que é atestado pelas constantes reelaborações de seus romances,
na busca da melhor forma de expressão. Enfim, entrega-se com amorosa dedicação
às histórias que conta porque acredita ser esse o seu modo de interferir no
andamento do mundo. E é.
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