Pular para o conteúdo principal

No calor da fogueira




Olha pro céu, meu amor/ Vê como ele está lindo/
Olha praquele balão multicor/ Como no céu vai sumindo/
Foi numa noite, igual a esta/ Que tu me deste o teu coração/
O céu estava, assim em festa/ Pois era noite de São João/
Havia balões no ar/ Xóte, baião no salão/
E no terreiro/ O teu olhar, que incendiou/ Meu coração
( Olha Pro Céu, Luiz Gonzaga )





Quem viveu sua infância e adolescência em cidades pequenas, ou em subúrbios afastados do centro da cidade, deve guardar doces lembranças das festas juninas. Por volta de 1971, na época com 11 anos, a gente confundia as fagulhas dos fogos de artifício com o brilho das estrelas que pontilhavam na lona azul do céu. A alegria e a emoção explodiam feito os rojões e cabeças-de-negro que saudavam as festas das noites de Santo Antônio, São João e São Pedro!
Lembro de uma típica festa julina realizada no sítio do seu Mané, numa noite fria e úmida de julho, onde sentíamos o calor da confraternização entre as pessoas reunidas em volta da imensa fogueira, regada a quentão, pipoca, paçoca, milho cozido e batata-doce. Alguém gritava: - Cadê o sanfoneiro pra começar a festa! E o velho sanfoneiro do Parque São Judas dedilhava as canções de Lamartine Babo e os forrós animados de Luiz Gonzaga, Zé Dantas e Humberto Teixeira, Abdias e sua Sanfona de Oito Baixos. Uma hora e outra incluía no repertório as músicas de Mário Zan. É claro, não poderia esquecer das famosas duplas caipiras como Tonico e Tinoco, da festa na roça, Alvarenga e Ranchinho, Vieira e Vierinha, Zé Tapera e Teodoro, Lio e Léo, Teixeirinha, Cascatinha e Inhana, Sérgio Reis e as modas de viola de Tião Carreiro e Pardinho. Pairava um clima de algazarra de sons e da anarquia das luzes, sempre era possível distinguir o brilho dos olhos e a emoção nas vozes daqueles que recitavam os versos para o ritual de “passar a fogueira”: “Santo Antônio disse,/ São João confirmou,/ que... (registrava o compromisso afetivo),/ pois Jesus Cristo mandou.”
Meus olhos de criança corriam mais que os busca-pés que percorriam o espaço de feltro negro, curiosos para fotografar cada detalhe daquela longa noite memorável, iluminando as barracas montadas de bambu, as bandeirolas de cores vivas, em forma de roda, a quadrilha circulando em volta do povo. Ela era organizada pela comunidade de jovens católicos da pequena e modesta igreja, de um amarelo carregado de branco, bem claro, parecia uma aguada.
O aluá, o arroz-doce, o munguzá, a pamonha e a batata-doce, assada na própria fogueira, brindavam os mais exigentes paladares entre uma dança e outra. Uma culinária com o típico sabor brasileiro. As vovós acompanhadas das senhoras casadas do bairro e arredores, serviam os participantes e, quando percebiam que estava acabando alguma comida ou doce, corriam para o fogão de lenha para não faltar nada na grande mesa de madeira maciça, forte e rústica. Já os moços, os homens casados e maduros, ficavam de um lado zelando pela harmonia da festa e ajudando no corte de lenha, reforçando as cordas que seguravam as estruturas das barracas.
Contam os migrantes nordestinos que paravam na estação de ferro em Rio Claro e, de lá, seguiam de trem para Mirante do Paranapanema, no final dos anos 20. No norte existia, entre outras, uma tradição que caracterizava as comemorações em homenagem aos santos Antônio, João, Pedro e Marçal. Essa tradição era chamada de “passar a  fogueira.” Ela tinha como objetivo selar um compromisso afetivo entre duas pessoas. Assim, quando o casal acordava um determinado “relacionamento de fogueira”, os dois, seguindo um ritual preestabelecido, “passavam fogueira” de compadres, de primos, de maninhos, de eternos namorados, etc. Era muito comum, entre os mais jovens, principalmente, a apresentação de uma outra pessoa com a seguinte expressão: “- Este é fulano, meu maninho ( ou primo, ou compadre, etc...) de fogueira”.
 As festas juninas e julinas tinham uma alegria solta, ingênua e despretensiosa, sem muita malícia e maldade como os balões, que giravam em volta de nossas cabeças sob o forte efeito do álcool, com o gosto característico e acentuado, proporcionado pelo gengibre e canela em pau. Consegui ver apenas dois balões no meio da noite desenhando triângulos no papel timbrado e azul escuro do céu. Havia um aroma e um sabor típicos brasileiros! A imaginação era excitada pelo brilho e pelo estouro dos fogos, o cheiro da pólvora, o calor da fogueira e pelo som da sanfona marcado pelo bumbo gravado na fotografia aérea do passado.






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na