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Dias circulares ressecados



Ilustração de Alejandro Santiago Ramirez










Sou a plena desorientação,
pelo calor intenso e abafado
dentro dos dias circulares sinto a vertigem.
O vento se levanta da cerne do rio,
como um soco e uma punhalada,
Um burburinho confuso
Um sono monótono pela fome
pulverizando as janelas e os neurônios
do cérebro: olho para dentro
e ouço sua voz de terra,
dos seres perdidos pelas regiões
sem geografia, ainda no desabrigo.



Um grande vento se derrama
gemendo encolhido, as falanges
descarnadas contornando
órbitas vazias no abismo,
onde pedaços do mundo
se ampliam em desespero.
Zumbido longo de abelhas
partindo os vidros do painel escuro.
O vento vem lamber os ossos,
enrolando-se no pescoço
como uma coleira de cão.
Os dedos percorrem os buracos
das órbitas vazias, tateam nas cavernas negras,
espectro fumegante em convulsão.



Sempre caminhando sem rumo
direita e esquerda muravam-me
até o esgotamento total.
Sede e fome minaram-me
Sono, febre, sinusite e dor de cabeça
construíram meu ciclone
segui em frente
e de tanto seguir
estacionei.



Sempre caminhando sem rumo
e quando tornei ao lugar de partida
rolei das encostas até sombras e sombrais
e nas masmorras dos dias incontáveis
sem memória.
Sempre caminhando em círculos
não me encontrei.
Minhalma já havia partido
e há muito viajo entre paralelas
noite frente ao dia
atordoado do vento das cinzas
varreu para o ato final
sais dos tempos murchos
no vento, eu quero água.



Sempre caminhando sem rumo.
Dois rios cruzam a minha vida
um correndo norte
outro correndo sul.
Este é o destino dos que nascem das noites.
Sempre aos poucos
nos troncos que a tempestade arranca
frondosos pomares de cal,
imóveis sobre o tronco,
pesa-nos o silêncio do rio seco.


Sempre caminhando sem rumo
na vertigem do sol a pino
do corpo dissecado.
Meus olhos ardem
pelo mormaço da terra arenosa,
os pés afundam para baixo
na direção do sumidouro
onde cobertores de raios infravermelhos
são estendidos sob o couro
dos corpos expostos
que desidratam pelo tempo.


Sempre caminhando sem rumo.
Sou a plena desorientação,
pelo calor intenso e abafado
dentro dos dias circulares sinto a vertigem
debaixo da gema estrelada,
água-viva de tentáculos de labareda solar,
anzóis fincados na cabeça e nas costas
para nos defumar no forno
que incendeia a garganta e corpo,
vazio atravessado pela insolação,
novelo de terra desenrolado,
a serpente ressecada.







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