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O realismo mágico de Murilo Rubião



Quadro de Laeticia Reunaut






Seus contos desvendam grandes dramas
da existência humana







            Por ser o primeiro contista moderno do gênero fantástico nas letras brasileiras, a obra de Murilo Rubião permaneceu praticamente desconhecida para o grande público durante mais de três décadas, quando a reedição do seu livro de contos O Pirotécnico Zacarias em 1974 o tiraria do anonimato, transformando-o praticamente em best-seller nacional. Hoje, com a divulgação maciça do gênero fantástico através das letras hispano-americanas (Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e outros), e mesmo no nosso meio com Rosário Fusco, Samuel Rawet, José J. Veiga, Moacyr Scliar, Murilo Rubião não é mais uma ovelha negra no panorama de nossas letras.
            “O mais estranho é o seu dom forte de impor o caso irreal. O mesmo dom de um Kafka: a gente não se preocupa mais, é preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reação mais”. Com estas palavras escritas em novembro de 1943, Mário de Andrade já apontava para o fenômeno mais característico da obra de Murilo Rubião: os temas fantásticos, aceitos pelo leitor como se fossem reais. Neste sentido, se de início pode nos surpreender a fala de um coelhinho, o que mais vai-nos intrigar é o nosso envolvimento com ele:
            “Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente: - Você não dá é porque não tem não é, moço?
            O seu jeito pálido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos”.

( “Teleco, o Coelhinho”. )



            Do mesmo modo que não nos causam espanto as metamorfoses de Teleco, tampouco nos surpreendem a sucessão infinita de mágicas operada pelo ex-mágico, os infortúnios dos dragões, o destino incerto de “O Convidado”, e outros fatos insólitos. Murilo Rubião cria um paradoxo entre uma linguagem simples e depurada, e temas absolutamente inverossímeis não só nós, leitores, não nos surpreendemos com os fatos narrados, como os próprios personagens aceitam os eventos fantásticos com a maior naturalidade. O que primeiro pode espantar o leitor é que seus personagens principais, a exemplo do ex-mágico, não se espantam nunca.
            Seus temas vêm amparados por técnicas narrativas como a hipérbole (exagero). No exemplo de “Aglaia”, o casal após evitar contatos sexuais e se esterilizar, continua gerando filhos que “nasciam com seis, três, dois meses e até dias após a fecundação. Jamais vinham sozinhos, mas em ninhadas de quatro ou cinco”. Do mesmo modo o conto “A Armadilha”, cria o elemento fantástico no final, através de uma hipérbole temporal que aponta para o infinito: “Aqui ficaremos, um ano, dez, cem ou mil anos”. Outra técnica geradora do fantástico é a reiteração. O número de objetos criados pelo ex-mágico mostra o aspecto repetitivo das ações que se reproduzem até a saturação. A lógica da repetição adquire dimensões mais amplas no conto “A Fila”, onde o personagem em suas vãs tentativas de conseguir falar com o gerente da companhia, volta a ocupar um lugar cada vez mais afastado da fila, não conseguindo jamais atingir os fins inicialmente propostos.


As epígrafes da Bíblia


            São constantes formais e temáticas do autor as epígrafes bíblicas (fragmentos extraídos do Velho e do Novo Testamento) colocadas no início de cada livro e de cada conto em particular. Esses pequenos textos têm por função apontar, de maneira sintética e simbólica, para os grandes temas a serem lidos. O fato de esses fragmentos serem extraídos da Bíblia não significa que os contos tenham um conteúdo necessariamente cristão, no sentido mais tradicional da religião. Muito pelo contrário. Tomemos como exemplo as três epígrafes que ilustram os seus textos, reveladoras da evolução temática de sua obra: “E quando eu tiver coberto o céu de nuvens, nelas aparecerá o meu arco”. (Gênesis, 9, 14) Nesta epígrafe do livro O Ex-Mágico (1947),o arco-íris caracteriza os primeiros contos e representa uma espécie de mensagem esperançada do homem.
            Em Os Dragões (1966), segunda etapa de sua obra, há a seguinte epígrafe: “Coisas espantosas e estranhas se têm feito na terra.” (Jeremias 5, 30) Aqui, deparamos o efeito de estranheza e espanto do narrador. Na terceira etapa, representada por O Convidado (1974) há uma espécie de radicalização da angústia: “Ao sobrevir-lhes de repente a angústia, eles buscarão a paz, e não a haverá”. (Ezequiel 7, 25) Desse modo, os zoomorfismos, metamorfoses, policromias e magias que caracterizam a primeira etapa da obra muriliana ficam agora deslocados para segundo plano. Não é fortuito o fato de o primeiro e o último livro dos contos da edição original de O Convidado fundamentaram-se em epígrafes extraídas do Livro do Apocalipse.


O mundo dos personagens


            O estar-no-mundo do homem é visto também como uma experiência sem solução. O tédio é capaz de aniquilar as mágicas do ex-mágico. A angústia dos eventos sociais fica bem retratada em “O Convidado”, assim como o artificialismo e a ausência de sentido das cerimônias sociais. Também a burocracia é severamente criticada em contos como “A Fila”, ou na decisão suicida do ex-mágico: “Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado”.
            O cotidiano tem uma força demolidora, reduzindo o homem a máscaras petrificadas, como é o caso de “Os Comensais”, em que fantasmagóricos personagens no refeitório de um hotel, repetem gestos vazios numa “atitude de permanente alheamento”.   Não há lugar para a salvação no universo muriliano. A solidão toma conta dos personagens, que se caracterizam por uma perpétua procura e um contínuo desencontro. Eliza, Mariazinha, Epidólia, a noiva da casa azul e outras são exemplos de mulheres que jamais respondem aos apelos afetivos de seus amantes. Aglaia representa essa carência afetiva às avessas: a sucessão infinita de partos nada mais é que um símbolo de sua própria esterilidade. É como se pesasse uma maldição sobre o ato da criação.
            Essa fatalidade parece estender-se ao próprio ato da criação ficcional. Murilo reescrevia continuamente seus contos numa tentativa alucinante de alteração que acaba remetendo continuamente às origens. “Reelaboro a minha linguagem até a exaustão, numa busca desesperada da clareza,” afirma ele em entrevista. Esse tenaz retorno ao texto não deixa de representar uma tarefa análoga ao penoso trajeto de seus personagens, perdidos num mundo de incessante procura, e sem respostas para as questões fundamentais do homem.

Realidade fantástica e absurda


            Qual a função dessas técnicas e temas fantásticos na narrativa do autor? O elemento extraordinário não se limita apenas a uma experiência de leitura prazerosa para efeitos de distração do leitor, mas assume uma função eminentemente crítica. Ou seja, o dado sobrenatural é um artifício da imaginação para remeter a conflitos originários da própria realidade.
            No Primeiro Manifesto do Surrealismo, em 1924, André Breton, fundador do movimento, afirmaria que “o que há de mais admirável no fantástico é que o fantástico deixou de existir, agora só há a realidade”. De modo análogo, no conto “Alfredo”, o personagem-narrador discute com sua esposa Joaquina a respeito de seu irmão-dromedário e comenta: “Quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia”. Nesse sentido, Murilo Rubião desvenda nos seus contos grandes dramas da existência humana. A partir daí, percebemos que fantástico são os homens, carregados de preconceitos, vícios e desamor, então os dragões, que chegam à Terra num estado de inocência semelhante à das crianças quando vêm o mundo. “Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso de nossos costumes”, é a afirmação significativa, e já carregada de crítica, que dá início ao conto.


Obras do autor


O Ex-Mágico (1947);
A Estrela Vermelha (1953);
Os Dragões e Outros Contos (1965);
O Pirotécnico Zacarias (1974);
O Convidado (1974);
A Casa do Girassol Vermelho (1978);
A Armadilha (1984);
O Homem do Boné Cinzento e outras Histórias (1990);
Contos Reunidos (2005);
Obra Completa (2010).



Referências


ARRIGUCCI JR., Davi. O mágico desencantado ou As metamorfoses de Murilo, prefácio a O pirotécnico Zacarias, editora Ática, São Paulo, 1974.

RUBIÃO, Murilo. Obra completa, selo companhia de bolso, 232 páginas, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2010.

SCHWARTZ, Jorge. Do fantástico como máscara, prefácio de O Convidado, editora Quiron, São Paulo, 1974.

ZAGURY, Eliane. As marcas de um foragido, prefácio de A Casa do Girassol Vermelho, editora Ática, São Paulo, 1978.







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