Ilustração de Pawel Kuczynski
“A vanguarda brasileira é moralista,
trocou o
convento pela célula política”
Marilena Chauí
No Brasil, permite-se fazer a
crítica do discurso competente e transmite credibilidade quem tem títulos universitários
e eu não os tenho, sou rotulado de utópico. De modo que me vejo obrigado a
retomar uma entediante discussão – que eu já julgava superada – para explicar que
fazer críticas à esquerda não significa automaticamente ser de direita. Antes
de tudo, critico as esquerdas com a maior consciência, justamente porque elas
dizem destruir o poder opressor quando, em geral, o estão instituindo em novos
moldes. Além disso, dedico especial atenção às esquerdas porque no interior
delas e não das caquéticas direitas é que se estão desenvolvendo os debates
mais inteligentes sobre nosso tempo. Mas, autodefinir-se de esquerda não
significa, necessariamente, garantia de progressismo. Ao contrário, frequentemente,
dizer-se de esquerda é um jeito de ser camufladamente conservador: utiliza-se o
discurso progressista como forma de se proteger contra ele. Não pretendo com
isso, dizer nada de novo. Há muito tempo se conhecem críticas, por exemplo, à
esquerda marxista que criou deuses materialistas como o Estado, novos papas, santos
e beatos, mais de uma bíblia, além de legiões de teólogos e exegetas bíblicos –
tudo no melhor estilo ópio-do-povo que os marxistas tanto execraram nas religiões.
Antes de tudo, não existe um sistema
coeso chamado “esquerda”, simplesmente porque esquerda e direita são conceitos
muito relativos e é muito fluida a fronteira entre ambas. Atitudes
revolucionárias de dez anos atrás podem ter uma conotação perfeitamente reacionária
hoje em dia. E nossas pretensões esquerdizantes com certeza estão cheias de componentes
direitistas. A gente ainda vai comer muito gato por lebre, se continuar
acreditando na falsa dicotomia direita-esquerda.
Vou repetir aqui, como o pensamento
e as atitudes conservadoras, de preconceito, de opressão, de repressão e fobia
à guetificação da cultura vêm indistintamente da direita e da esquerda. Por
ora, prefiro lembrar da questão literária, em cujo contexto se inserem a
reflexão, a inquietação e, gradativamente, a mudança de comportamento. A
verdade é que todos os profissionais do poder desprezam o movimento cultural,
principalmente a literatura como tema político: em termos de tomada de poder,
ela não tem a menor importância. Se a esquerda compartilha desse desinteresse é
porque talvez esteja aí o seu lado mais vulnerável. Nesse sentido, não é
difícil compreender porque, nos socialismos reais, existe um vergonhoso
moralismo convivendo com transformações econômico-políticas de importância. No
país atual, já se encontram programas de partidos e candidatos que fazem
referências progressistas à difusão da cultura, a exemplo de ampliar, melhorar
e reformular o uso dos espaços culturais. Tirar dos museus o clima de
sarcófago, transformando-os em instituições vivas: centros de criação e
instrução, além do aspecto de contemplação. Invadir os salões vazios e fechados
com atividades de interesse popular, um projeto à tarde, teatro à noite e
teatro infantil nos fins de semana nas periferias das cidades. A tese vale para
os térreos de repartições públicas, da literatura e da sexualidade, entre
outros temas. Mas isso, geralmente, não passa de um estratagema de incorporar
temas incômodos justamente para neutralizá-los. Assim, o (tímido) apoio de
políticos progressistas à luta de produtores culturais, de educadores, das
pessoas sem teto, da falta de acessibilidade para os deficientes físicos,
visuais e da fobia da sociedade brasileira ao desvio não ultrapassa, via de
regra, o mero interesse eleitoreiro, quando não é uma maneira de aliviar a
boa-consciência, para não mudar rigorosamente nada. Por isso, mais que uma
compulsão de transmitir um signo de contradição na sociedade, de um exercício
literário de denúncia, escrever traz a sensação de fluidez da vida e celebra o
desejo e o sonho como uma pedra no sapato do poder, não importa que seja de
direita, de esquerda ou de neoliberal.
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