Lúcio Cardoso e sua amiga Clarice Lispector foram estigmatizados
por trabalharem com regiões obscuras
Livro revela um mundo sem saída
Lúcio Cardoso viu a literatura como
um combate nas trevas, luta que levaria necessariamente a um desfecho trágico –
mas era a própria certeza da tragédia que, na esperança de adiá-la, movia o
conflito. Quiseram compará-lo aos existencialistas e aos adoradores do nada,
mas ele disse: “Do nada só se tira mesmo
o nada, pois todo escritor tira sua criação, seja ela qual for, de seu fermento
interior.”
Porque trabalhava com regiões obscuras,
logo sua escrita foi associada a um tipo retórico de feitiçaria. Estigma que
também cairia, depois, sobre a obra de Clarice Lispector e é só um tampão para
o desprezo. Curioso: na juventude, aluno do Instituto Superior de
Preparatórios, ele editou um jornal chamado A Bruxa. O fio arrastava-se, portanto, desde muito tempo.
A trama que se arma com as cartas e
confissões que compõem a Crônica da Casa
Assassinada poderia estar, de fato, num drama de Shakespeare, numa ópera de
Puccini, no teatro de Nelson Rodrigues. Temas recorrentes, inesgotáveis, e que
por isso, porque carregam a força do perpétuo, hoje costumam ser confundidos
com a repetição e a monotonia – quando, cada vez, o mesmo é sempre outro, sendo
a tragédia, na verdade, o cenário do particular.
Como lembra o crítico André Seffrin
na apresentação, Lúcio Cardoso escreve, antes de tudo, contra Minas Gerais – na
visão catastrófica do escritor, a terra do barroco, das novenas e do silêncio: “O punhal que levanto, com a aprovação ou
não de quem quer que seja é contra Minas. Que me entendam bem contra a família
mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a
religião mineira.”
Afirma-se, assim, um Lúcio rebelde
nesse sentido à destruição que toda a crítica aponta em seus livros, igualada à
revolta, assume caráter positivo, podendo ser vista como afirmação da vida e da
liberdade. Ele mesmo assim definiu o Estado que, ainda que, se transferindo tão
cedo, para o Rio de Janeiro, jamais conseguiu abandonar. “Minas esse espinho que não consigo arrancar do meu coração.” E por
isso, ao avançar com sua faca contra o monstro que carregava dentro de si, não
pôde deixar de se mutilar.
Mas, Lúcio Cardoso não poderia
escapar de seu tempo e dos limites a ele impostos. A revolta, convertida em
fuga, transforma-se logo em agitação, e até em convulsão, metamorfoses que, se
na literatura serviram como motor para a escrita de um livro fabuloso, em sua
vida pessoal o conduziu à depressão. Foi Lúcio também que disse: “Não sou homem de sociedade; não sei jogar
pôquer.” Incapaz de blefar, de desempenhar o grande teatro social de seu
tempo, Lúcio construiu para si a imagem de anjo caído, empurrado para a margem,
sem lugar.
Noite
impenetrável
Contra a religião espartana dos
jesuítas, que apesar de tudo será até o fim a origem de seus conflitos,
apega-se a uma noção mais fluida, ainda que menos culpada e tortuosa, de Deus
enquanto mistério a decifrar – um Deus-charada, revelação impossível que, se
leva ao desespero, leva também à criação. Por isso, afirmava que “a tragédia é o estado natural do homem.”
Para Lúcio Cardoso, a alma humana, como em Dostoievski, e como lembra outro de
seus biógrafos, Mario Carelli, seria sempre uma “noite impenetrável, sendo a literatura uma lâmpada frágil, oscilante
que, às vezes, desfigura mais do que define, mas ainda assim a única com que se
pode contar.
Em seus célebres Diários, encontramos ainda uma
anotação, datada de 1951, que ajuda entender a trama atordoante que move a Crônica da Casa Assassinada: “A lei de mudança é permanente, o que quer
dizer, ou nos modificamos, ou apodrecemos.” Incapaz de se alterar, os
personagens da família Menezes são conduzidos à podridão, atmosfera afinal que
transpassa todo o mundo literário de Cardoso, um planeta em ruínas, onde aos
lúcidos resta apenas clamar e espernear. O rebelde é um inadaptado, não só
incapaz de blefar, mas também de fazer o jogo social, de encontrar para si um
lugar e que assim é empurrado para a margem, como dejeto.
Por isso, toda a chácara dos Menezes
parece prestes a ruir, todos os personagens se afogam nas palavras e um clima
de claustrofobia, por fim, envolve todos. Um mundo que se revela sem saída. “Cegamente marchava ao meu destino,
insubmisso, feroz, atormentado e solitário”, Lúcio Cardoso escreveu em seu Diário e aqui, inda que seja ele quem
fala, podemos ouvir a voz de qualquer um de seus personagens.
Não fosse o cineasta Paulo César
Saraceni, que em 1971 adaptou Crônica da
Casa Assassinada para o cinema, o livro estaria hoje completamente
esquecido. Recalcado pela atmosfera ligeira, de egoísmo, de vaidades e de
badalações frívolas e cínicas que vigora neste século, em que a literatura,
afora exceções honrosas, parece ter se convertido num jogo, quando para Lúcio
Cardoso, e aqueles a quem ele transmitiu seu fogo, ela é uma questão de
salvação. Se Cardoso, incapaz de livrar-se de seu passado, não cessava de
buscá-la na religião, seu livro, desmentindo-o, mostra que ele a encontrou, de
fato, na palavra.
CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA
Lúcio Cardoso
Romance
Literatura
Brasileira
Brochura
de 518 Páginas
Editora
Civilização Brasileira
14ª Edição
2015
Comentários
Postar um comentário