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Corcel de fogo









Uma sinfonia de vozes destoantes,
mas sua trama poderia estar em dramas
de William Shakespeare ou peça de Nelson Rodrigues









            Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, livro publicado em 1959, quando tinha 47 anos e três anos antes de sofrer o primeiro da série de derrames que o impediria definitivamente de escrever. O romance, uma grande sinfonia de vozes destoantes, representa o ponto mais extremo de sua obra, hoje inteiramente esquecida, injustiça que o mais recente estudo Diários – Lúcio Cardoso, editados por Ésio Macedo Ribeiro, um calhamaço de 755 páginas, publicado pela Editora Civilização Brasileira, vem em parte reparar. É verdade que, já na época de seu lançamento, Crônica da Casa Assassinada provocou mal-estar, perplexidade e algum desprezo. Intimista, trágico, desesperado até, o livro avançou contra todos os cânones que regiam a literatura brasileira desde o Modernismo, desviando-se por um caminho pessoal cheio de coragem.
            Um dos biógrafos de Lúcio Cardoso, o jornalista Hamilton dos Santos, ressaltou o paralelo entre a atmosfera sobrecarregada da Crônica e um elemento de circunstância: enquanto o escritor trabalhava em seu romance, sua mãe definhava por culpa de uma doença grave, a decadência implacável que foi obrigado a acompanhar de perto teve seu contraponto salvador na criação literária. O declínio de uma família, o abatimento como última posição possível diante da existência, a desolação são os grandes temas do livro.
            No entanto, para além dessas fortes motivações pessoais, Crônica da Casa Assassinada é um relato que se alinha à estirpe mais secreta de nossa produção literária, a mesma de Otávio de Faria, de Cornélio Pires, e que depois, mais encorpada, e numa solução mais radical, desaguaria na obra de Clarice Lispector. Autores que, em vez de se apegar às motivações externas, como as grandes questões da Nação, os personagens regionais e as tensões dos vanguardistas, voltaram-se para dentro fazendo, ao contrário, uma literatura reflexiva, introspectiva e obscura. Livros, como disse Otávio de Faria, “atraídos pela destruição”, o que era mais uma forma de repudiar a realidade tal qual se apresentava, fosse ela opressiva ou libertária, e se refugiar na verdade mais espessa da solidão.
            Lúcio Cardoso não desmentiu essa afirmação de Faria, ao contrário, endossou-a. “Esta perpétua tendência à autodestruição...Sim, de há muito ela existe em mim, e eu a conheço como um doente acaba conhecendo o próprio mal”, escreveu, sem pudor algum. “É incalculável o número de ciladas que invento para me perder.” Perder-se significava, em sentido mais preciso, desviar-se do personagem que a formação familiar o levava representar. Família mineira, católica, conservadora, voltada para a aparência, a cautela e o disfarce, enquanto Lúcio Cardoso só se interessava pela vida escancarada.
            Aos 32 anos, com o lançamento de Inácio, afirmou-se como grande escritor. Logo depois, começou a escrever para teatro e, em seguida, para o cinema. Sua peça O Filho Pródigo, de 1947, foi exaltada por Clarice Lispector, que mais tarde viria a viver uma paixão secreta, e jamais realizada, por ele. Sobre Lúcio, Clarice, sempre precisa, disse: “Estou com saudades de você, corcel de fogo.” Lúcio Cardoso, de fato, tinha uma mente acelerada, irrequieta e nela frequentemente se imolava.


Linha secreta


            Um motivo latente, mais vigoroso, percorrer não a Crônica, mas toda a obra de Lúcio Cardoso: os conflitos espirituais. Crônica da Casa Assassinada começa com uma citação de João, o mais atormentado dos evangelistas, a respeito da morte e da ressurreição. A atmosfera pesada de suas narrativas, entremeada de culpa, remorsos, ressentimentos, descontrole nervoso e ira, são efeitos diretos dessa linha secreta e nesse ponto a obra de Lúcio Cardoso não deixa de apresentar um parentesco sutil com a de Nelson Rodrigues. Autores distantes em quase tudo, mas atordoados pela mesma obsessão pela ruína e pela condenação.
            Crônica da Casa Assassinada é, a rigor, uma montagem de cartas, confissões, depoimentos assinados por personagens diversos. Na chácara dos Menezes, uma família que definha sob preconceitos e ilusões, a vida é contada em segredo, enquanto o cotidiano é só um teatro patético. Ali, como em Nelson Rodrigues, estão alguns dos recursos clássicos que, desde William Shakespeare, animam não só a literatura, mas o mundo em que ela é gerada: os amores duvidosos, o incesto, a paixão enlouquecida, a inveja, o adultério, a loucura, esses focos intoleráveis que movimentam a rotina humana. Temas universais que, nos anos 60, pareciam em desuso, se não mesmo inteiramente fora do lugar, e Lúcio Cardoso indiferente às pressões dos críticos e da moda, recoloca em cena com uma determinação que não se conhecia. E é esse vigor, em grande parte, que afugenta alguns leitores.
            Por não conseguir enquadrá-lo, e por insensibilidade, a crítica desde logo, enfileirou Lúcio Cardoso na corrente do “romance espiritualista”, conceito construído só para se opor ao regionalismo e às experiências radicais de 22. Insuficiente, portanto, mas que não deixa de servir para apontar a solidão em que o autor da Crônica, naquele momento se encontrava.







CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA
Lúcio Cardoso
Romance
Literatura Brasileira
Brochura de 518 Páginas
Editora Civilização Brasileira
14ª Edição
2015







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