Seu livro sugere sair da superfície do romance
tradicional
e se lançar à exploração do que se escondia
nos
subterrâneos da vida do homem
enquanto ser universal e do povo
interiorano
Algo existe de visionário
apocalíptico em Lúcio Cardoso. A prosa e a poesia são os seus instrumentos de
busca e sondagem. Tanto em seus quadros como na literatura refletia a densidade
e as cores doídas. Imagens de um Brasil pesado na sua memória que ele
retratava, buscando pelos cantos todos das suas lembranças. Cardoso cria e
também oferece um mundo, chamando-nos a participar de suas visões,
contagiando-nos desse perturbador e sutil poder de descobrir, fixar e nomear
coisas transcendentais, seja pela palavra, seja pela forma e cor, com que
admirável força, soberana e invencível, mergulha no conhecimento para
transfigurar o caos. Semelhante a uma flor que só pode desabrochar, como um
transfigurado pela poesia chocante da noite.
A intensidade de seu romantismo está
na percepção aguda dos fenômenos da natureza humana. Lúcio Cardoso não descreve
no plano da geometria analítica; há na sua visão a penetração dos videntes,
aquela maneira quase infernal de um Julian Green, em dissecação que não é dos
sentidos como Marcel Proust, mas que exercita sobre as camadas subterrâneas da
alma... O grande poeta que é Lúcio Cardoso não tem medo das palavras e se deixa
dominar pelo ritmo da música que se derrama pelas suas alucinações como um
gemer de uma fonte que chora no fundo da terra... Ficamos entre o sonho e a
vida, arrebatados pela magia de uma prosa que não tem ossatura, e que é só uma
carne incendiada de pecado. Mas, nada da visão maniqueísta do bem e do mal. O
que há nele é um dionisíaco de aparência apolínea. De olhar para ele com uma
equidistância capaz de o deslocar mais nítido, de oferecer sua verdadeira
dimensão. Sobretudo, de tentar captar a música do seu sangue e reconhecer,
nele, o grande artista cujo lugar não foi preenchido por ninguém.
Toda sua obra se marca pela limpidez
da técnica, pela elegância de estilo e pela densidade da dor. A dor, esta
constante que permeia seus livros, causada ora pelas tentativas de se
autoconhecer – e para isso mergulhava fundo no seu escaldante inferno interior
– ora pela necessidade de imprimir a sangue as impressões que trazia destas
viagens.
Se para Clarice Lispector escrever
era se dar às mais inesperadas surpresas, ler Lúcio Cardoso é viver a mesma
experiência. No caso, trata-se de surpresas não muito agradáveis, pois – e eis
o grande mérito de Lúcio, enquanto escritor – suas palavras, suas histórias,
seus personagens, enfim, sempre arrancados de uma marginalidade rural
suburbana, doem diretamente no coração do leitor.
Em 1936, Lúcio Cardoso teria encontrado o seu verdadeiro
caminho, a sua via-crucis no romance moderno brasileiro, com a publicação de um
livro escandaloso para a época, era A
Luz no Subsolo, que rompe de vez com o regionalismo. O próprio título do livro
sugere sair da superfície do romance tradicional e se lançar à exploração do
que se escondia nos subterrâneos da vida do homem enquanto ser universal e da
vida do homem brasileiro. Não aquelas vidas que os regionalistas viam
deslocar-se por sobre o solo, mas as que se deslocavam por baixo, sem fôlego.
Mas os seus corpos espiritual e
físico estão impregnados da palavra, o seu grande vício:
–
Sinto dia a dia o romance dilatar-se em mim – dilatar-se ao máximo, a ponto de
transbordar e começar a ser outra história. E é estranho: quando silêncio se
faz em torno, verifico o levantamento dessas paredes, desses becos, dessas
casas fantasmas que se erguem do nada, dessas paisagens ao vento, desse pequeno
mundo inexistente de que conheço o mais íntimo odor, a mais humilde fenda na
parede, a luz que bruxuleia na maior distância e que no entanto, como nos
delírios dos toxicômanos, só existe dentro de mim.
Escrever era certamente, a fórmula
de manter a coragem de ser ele mesmo. Porque tantas vezes Lúcio Cardoso se
funde à sua obra (e nela é poesia e prosa num só gesto – o de escrever) a tal
ponto que se torna “penoso” decifrar quem é quem entre ele e suas poesias e,
finalmente, entre ele e ele mesmo.
A partir dos 40 anos processou-se na
obra de Cardoso uma mudança bastante significativa, onde se percebe um estilo
mais depurado, a técnica mais em função do comando inconsciente e a mesma
orientação na escolha dos temas, ou seja, o aprofundamento cada vez mais
radical rumo à descoberta de si próprio. Como nos sugere neste poema, abaixo,
datada de 1944:
É do inferno somente,
esta carne que assisto,
suas brancas línguas,
seu odor de feno.
É do inferno esta luz
queimada,
esta música de veludo e
de sangue.
Mas já meus olhos se
acostumam
e o outro olhar descendo
ao meu
revela, aflito, o que é
um destino inteiro.
Fragmentos
“Não sei se essas
contradições todas não são exatamente o conteúdo vivo que me forma: essa
aspereza, essa impaciência (que me faz as mãos frias; a garganta cerrada) essa
incapacidade de acertar a vida nos seus planos mais simples, esse amor ao
desmedido, ao trágico...”
“Que me importa o
desalinho, se a febre é o meu sistema”
“- Todas as paixões me
pervertem. Todas as paixões me convertem.”
“ E assim dôo por querer
/ Estoque de mim por não saber / Acaba-se / Dôo aquilo que não nego / Dôo de
mim o que me sobra / não a obra mas o cego.”
“ – Tenho um sangue de
aventureiro, de cigano ou saltimbanco, aliado a não sei que instinto feroz e
perfeitamente suicida. Reúne-se a isto uma diabólica fantasia que me faz julgar
as coisas extremamente fáceis às minhas intenções. Talvez tenha herdado isto de
meu pai. Digo isto, mas me pergunto quando Deus me dará forças para ser
paciente com os meus pobres limites?”
“Ao sol sou como um
carro ataviado de seus luxos fúnebres. Passo, ninguém sabe quem sou.”
“Os pés compridos, o corpo
deitado sem lençol, todo ele esquecido, como uma folha breve largada ao tempo.”
Na certeza de quem, um dia
voltando de onde
partiu a portaria,
direi: quem se esconde
neste mar inútil – quem
por trás deste papel
anuncia o que foi e o que vem
a este estranho junto à mesa?
Agora, como alguém,
intato o papel exclama
num adeus que não demora:
ninguém, ninguém.
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