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O mundo transfigurado pela palavra




Claudio Willer, poeta, tradutor, ensaísta e uma assumidade
sobre o Surrealismo e a Geração Beat






J´ai tant revê de toi
que tu perds ta realité

Robert Desnos









            O rito alucinatório do poeta Claudio Willer transfigura a palavra. A substância do poema é a revolta que substitui o mundo da ordem e da racionalidade instituído por um universo de leis e de medos.



O vértice do pântano




1


O pântano é um espelho despedaçado – nele flutuam imagens conduzindo ao além-mar das derrotas, dos dias de angústia mais negra. Eu me perderei pelos labirintos e pelas mansardas, em busca de uma lembrança cercada por antenas trêmulas e lampiões chineses. Abrem-se as corolas para mais um abraço mortal do destino, e a cidade estremece e recua diante da proximidade do Apocalipse, enquanto percorro as ruas de muralhas desabadas e canteiros desertos, as mansões que aprisionam tempestades de gaviões negros. A cidade e seus serpentários, sua coloração de sacrifício, suas vertigens, seus braços que não alcançam mais o próximo instante. Os telhados me sufocam e dão a certeza de que há gestos que são uma antecipação da morte e olhares que encerram abismos.



4



Todo rio é um convite ao sobressalto, à morte através de chamas e venenos terríveis.
Todo rio é um convite ao amor entre raízes milenares e campos roxos sulcados por veios de cristal. Pianos antigos, estações ferroviárias, um telégrafo enferrujado: fragmentos que gotejam sobre o meu corpo parcialmente destruído pela madrugada, o coração lancetado por um lírio ardente, galgado por mãos sensíveis segurando punhais, e engastado em um paredão infinito, entre pupilas veladas, algemas de marfim, e estandartes gravados a fogo. Isso, durante anos, que se dissolviam carregados pela tempestade. Não temíamos, porém, a escuridão, nem os perigos da febre e do mármore, e as conspirações de silêncios lacrados. Fomos só nós dois, unidos como um véu flutuante, à espera de maiores presságios. Só nós dois, os corpos inertes e solenes, no meio dos espelhos mansos e das crateras que não perdoam. Assim lançamos nosso desafio, apenas os dois, e a conivência dos sabres e das medusas.






(Fragmentos de Anotações para um Apocalipse, páginas 133 e 134, de Estranhas Experiências e Outros Poemas, de Claudio Willer, Lamparina Editora, Rio de Janeiro, 2004.)











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