Ilustração de F. Bianco
A questão da formação das preferências é ignorada pela maior parte dos
órgãos de cultura e da ciência política. Uma justificativa do pensamento
liberal recusando a crítica da produção das preferências. Caso não aceitemos
este pensamento, estamos caindo no paternalismo, onde a autonomia do agente é
ameaçada pela ideia de um observador externo em condições de identificar suas
“verdadeiras” preferências, mesmo contra sua vontade expressa. Um argumento que
a posição antipaternalista está correta, em princípio, mas desloca a discussão.
Acredito que o principal obstáculo à formação autônoma de preferências não seja
o paternalismo, mas a dominação. Existem produtores culturais e grupos que
possuem dificuldades de formular e expressar autonomamente suas preferências
quando estão sujeitos à relação de dominação.
A falta de autonomia no meio cultural predomina no Brasil e revela
instituições que não cumprem a sua missão de formação, de difusão, de educação
e de cidadania. Isto em decorrência da centralização das ações culturais pelos
órgãos públicos e serviços de entidades representativas do comércio e da
indústria, pelos critérios de forma subjetiva, vaga e obscura de avaliação e
escolha de projeto. Um assunto disfarçado pela imprensa em geral. Por outro
lado, demonstra a enorme falta de atitude, de sensibilidade social e valendo-se
do seu individualismo, boa parte do meio artístico não protesta de forma
veemente contra a postura que caracteriza o paternalismo cultural. Tal
manifestação reivindica a reformulação dos critérios de seleção inoportunos e
incorretos pelos responsáveis.
Mais útil construir o problema como sendo relativo aos obstáculos que a
dominação apresenta à autonomia dos agentes, daí o paternalismo entre como um
caso, em vez do contrário. Para tanto, necessita-se entender a formação das
preferências não só, nem mesmo prioritariamente, no nível dos indivíduos, mas
no nível da sociedade, ou seja, levando em conta as estruturas (e quais grupos
as controlam). Para a maioria dos manipuladores, coloca-se como imperativo
reduzir as ambições dos produtores culturais, adequando a um horizonte limitado
de possibilidades e adaptar suas preferências diante de circunstâncias, não só
as suas, mas as dos outros. O que gera essa possibilidade é o controle
diferenciado de recursos materiais e simbólicos, estabelecendo assimetrias na
influência sobre mercados e estado, e no acesso à autonomia individual e na
participação na autonomia coletiva pode, assim, ser considerada a desigualdade
da política central, que condensa todas as outras.
Comumente usam a falsa premissa de que o fomento à produção artística
seria uma política prioritária, quando não imprescindível, para a sociedade.
Trata-se de argumento oportunista e absolutamente afastado da realidade. Sim,
cultura é importante, mas uma sociedade pobre e cheia de problemas tem inúmeras
prioridades antes de começar a pensar em incentivá-la com dinheiro público. Mas
esse não é o único problema. Na verdade, o subsídio cultural, acaba impondo aos
cidadãos dois tipos distintos de dano: um de caráter financeiro e, de outro, de
cunho moral, além da dominação na formação das preferências. Os prejuízos
financeiros derivam do fato de que, ao contrário dos patrocinadores privados,
os quais estarão atentos, entre outros aspectos, à viabilidade
econômico-financeira de qualquer investimento, os governos frequentemente
estarão de olho apenas no ganho político. Ao desconsiderar o retorno econômico
de um projeto objeto de financiamento direto, ou provendo renúncia fiscal a fundo
perdido (modelo predominantemente da Lei Rouanet e de um programa do Governo do
Estado de São Paulo), o governo está dilapidando recursos que não lhe pertencem
e, consequentemente, aumentando o ônus tributário – presente e futuro – dos
pagadores de impostos. Tudo isso em prol de investimentos cujo retorno social é
bastante duvidoso.
Já o dano moral é um pouco mais sutil e, por isso, difícil de ser
percebido. Quando o Estado coloca dinheiro público numa obra qualquer, uma
ínfima, porém significativa, parcela daquele recurso pertence a cada um dos
contribuintes. Isto quer dizer que, independentemente da minha vontade, dos
meus valores, dos meus princípios morais, políticos e religiosos, meu dinheiro
pode estar sendo usado para financiar espetáculos com os quais não tenho a
menor afinidade ou, pior, dos quais discorde frontalmente.
Outra mazela importante do financiamento público à cultura, como de
resto a qualquer outra atividade produtiva, é a partidarização dos
beneficiários. Em tese, os recursos de fomento deveriam ser distribuídos de
forma democrática, mas, como eles, são escassos, o mecenas estatal, agindo
pelas mãos de alguns “especialistas” estrategicamente instalados em postos-chave
da cadeia burocrática, irá inevitavelmente escolher, entre os inúmeros
postulantes, aqueles politicamente alinhados com o governo, além dos que se
mostrarem mais eficientes da arte da adulação. É claro que a maioria tenderá a
apoiar o partido da hora.
Não há razão para que atividades artísticas – como ademais qualquer outra
atividade empresarial – não devam sobreviver às suas próprias expensas. Um
filme, uma peça, um concerto, um circo, ou uma ópera darão retorno quando forem
de boa qualidade, bem divulgados e vendidos a preço justo. No país,
infelizmente, criou-se o hábito do paternalismo cultural, em que os eventuais
lucros de um espetáculo são dos produtores, mas os prejuízos são de todos.
Dentro deste raciocínio, Millôr Fernandes nos diz, com seu habitual sarcasmo,
que “o cinema brasileiro quando dá lucro é indústria, quando dá prejuízo é
arte”.
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