Convivemos grande
parte da nossa história com a vergonha e com a violência da escravidão. Os
negros africanos, removidos violentamente de suas culturas e atirados numa
terra estranha, perdiam toda a vontade de viver. Sem qualquer esperança e
sentido para suas vidas, eram acometidos de um mal denominado banzo e acabavam morrendo sem qualquer
causa física aparente. Traduzido originalmente como “saudade”, banzo significa na verdade a morte
decorrente da apatia e da falta de sentido para a vida. Como brasileiro da
geração pós-64, fui induzido a acreditar no “Milagre Brasileiro”, que prometia,
entre outras coisas, a transformação do País numa grande potência mundial,
tecnologicamente avançada e economicamente estável. Hoje, somos obrigados a
conviver com o fracasso e com as consequências desta e de outras desastrosas
aventuras dos últimos anos (sucessivos planos econômicos, aumento de impostos,
etc.) que vêm retirando de nós toda e qualquer esperança de vida.
Economicamente
estamos falidos. Atirados ao fundo do poço por sucessivos governos que
administraram a “cousa pública em causa própria”, do milagre restou-nos apenas
uma dívida externa escravizante, alguns monumentos de concreto e uma classe
empresarial ávida apenas por lucros cada vez maiores, subsidiada por
inesgotáveis recursos federais e desenvolvida com base num protecionismo
cartorial frágil. O discurso do papel social da empresa tem estado presente nos
pactos econômicos e nas negociações sindicais, apenas para legitimar e fortalecer
o jogo do “toma lá dá cá” entre empresas e governo. Os trabalhadores têm
servido apenas à manipulação dos interesses políticos e para pagar a conta dos
enormes déficits públicos gerados pela incompetência administrativa dos nossos
governantes.
Na política, ficamos
congelados por 20 anos à espera de um “libertador” que nos livrasse de todos os
males, mas, com a impossibilidade de se “fazer política” em todos os níveis,
estamos agora com os mesmos políticos de décadas passadas e, portanto, com os mesmos
problemas. Ou será que um país com este enorme potencial de recursos naturais e
humanos tem que assistir anualmente ao enterro de milhares de crianças, causado
pela fome e pela falta de condições mínimas de subsistência?
Em termos sociais,
clamamos todos pelo fim da violência e por uma sociedade mais justa e
igualitária. Mas somos os primeiros a valorizar a esperteza daqueles que
conseguem burlar as regras estabelecidas. O Rio de Janeiro é o exemplo mais
trágico desta posição. A valorização do “jeitinho carioca de levar a melhor”,
da malandragem, do trabalho esporádico e do descaso com a contravenção serviu
apenas para levar a cidade ao triste estado de violência, abandono e miséria
que hoje presenciamos. A nossa Chicago dos anos 2000 foi construída sobre a
impunidade e sobre o desrespeito à vida humana. Se já não nos bastasse conviver
com toda esta triste realidade, resultante dos “milagrosos” planos econômicos,
temos agora que sofrer também por antecipação. Ao menor sinal de crise ou
recessão, iniciamos um novo período de destruição de nossa capacidade produtiva
(concordatas) e de consumo (demissões), que está arrastando o País para longe
dos países mais desenvolvidos. A economia brasileira estagnou de 2017 para cá,
por pura incompetência e falta de visão do governo e dos empresários
brasileiros, ou será que os exemplos da Venezuela e dos países asiáticos não
nos bastam para contradizer as previsões mais pessimistas sobre os efeitos que
a “Grande Recessão Mundial” produziria este ano. Enfim, exemplos é o que não
nos faltam para reconhecer que somos hoje o resultado de uma sociedade de
pessoas individualistas, egoístas e orgulhosas, que repousa sobre a expectativa
e não sobre o trabalho. Mas será esta realmente a sociedade que queremos deixar
para nossos filhos e netos? Tenho certeza que uma enorme parte dos brasileiros
responderia não. Então, por que não conseguimos mudar todo esse estado de
coisas?
Creio que o primeiro
passo, por mais difícil e doloroso que seja, é reconhecer o fato de estarmos
degenerando gradativamente nossos valores morais básicos de respeito à vida e
ao ser humano. É urgente a reformulação de alguns aspectos da cultura
brasileira, pois só assim conseguiremos barrar a evolução da apatia, da
desesperança e da falta de sentido, que se alojou na maioria dos jovens. Esta é
a consequência mais danosa que os sucessivos fracassos das “grandes promessas” têm
produzido na sociedade brasileira, o que resultará, nas eleições deste ano, no
maior índice de votos brancos e nulos da nossa história. Temos que acreditar
que é possível a construção de uma sociedade com menos desníveis sociais,
através do trabalho com dignidade e honestidade, da competição sadia, da
preocupação com a comunidade e com a natureza, da valorização do bom e do belo.
Tenho a certeza de que você vai dizer que isto é utopia, que todo mundo age na
direção oposta, que só você mudando seu comportamento não vai resolver nada e
que é impossível mudar. Mas isto é e sempre será possível! Não vamos mais
acreditar nas grandes promessas, mas sim nas pequenas promessas que faremos a
nós mesmos, para que comecemos a mudar nossos comportamentos e atitudes a
partir de agora, não somente no discurso mas, principalmente, nas nossas
pequenas ações diárias, acreditando que é possível a construção de um país
diferente e melhor, da qualidade do nosso esforço nascerá o êxito ou surgirá o
fracasso do conjunto.
Pense nas consequências
do exemplo que temos dado como Nação: acostumados a desacreditar em todas as
nossas instituições, estamos, na verdade, desacreditando em nós mesmos, como
seres humanos. Os anos de escravidão deixarão marcas tristes e profundas na
nossa cultura, mas nós vamos fazer com os nossos jovens o que fizeram aos
valentes negros africanos, senão estaremos condenando mais uma geração ao banzo,
só que agora seremos todos cúmplices deste mal, pois conhecemos muito bem todos
os seus sintomas, mas fomos incapazes de combater-lhe as causas.
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