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Redemoinho perturbador na casa (6)

 

(Sexta parte)

A paternidade, uma questão cultural e responsável pela organização da sociedade. Para Freud (1999), a imagem que o filho constrói do pai está relacionada aos poderes excessivos e à desconfiança, a qual está intimamente ligada à admiração que o filho possui pelo pai. Sendo assim, a figura paterna fica no alvo de ódio – uma vez que representa um obstáculo aos anseios de poder e aos desejos sexuais – e de admiração – pois sua ausência causa melancolia e desequilíbrio pessoal. Dessa forma, a ausência da figura paterna como elemento decisivo para a criação do escritor Lúcio Cardoso, pois transfere para seus romances o que chamamos de “escrita da orfandade”, que consiste em uma busca pela própria origem, uma tentativa de recuperar algo que foi perdido no passado.

Assim, personagens fortemente marcados pela ausência da autoridade paterna são recorrentes nos romances cardosianos. Não é diferente com o “romance autobiográfico” Dias Perdidos, pois o personagem Sílvio, por ser isento da figura de autoridade paterna, torna-se um sujeito franzino e passivo. Isso facilmente percebido na linguagem do livro, que nos direciona para uma leitura lenta, marcada pelo peso da busca incessante e árdua por algo que faça sentido para o personagem, sem nunca encontrar, obrigatoriamente, um sentido, embora, ao fim da narrativa, a escrita esteja apontada como uma possível saída. Tornar-se escritor pode ser um modo de conviver com a falta do pai e com a impossibilidade de o personagem lidar com seu sentimento de deslocamento diante do mundo, que se descortina à sua frente. Sílvio, ao fim do romance, muda-se de cidade e busca uma função para si.

Origem e paternidade entrelaçam-se, então, nas páginas de Dias perdidos, porque a busca da identidade de Sílvio remete-nos a um longo percurso de incerteza, culpa e conflitos que só cessam, ou recomeçam de maneira diferenciada, quando o personagem se desvencilha de todas as imagens retorcidas que constrói do pai e de todos que o representam, voltando-se para a escrita. Nesse momento o personagem se vê como reflexo desses conflitos e obrigado a livrar-se do pai, para que se torne senhor de si, ainda que essa identidade seja pautada na criação de um mundo idealizado na imagem do outro.


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