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A arte como artifício





a palavra experimental assalta a gramática




Nos anos 70, uma geração desconfiava da palavra e da ordem imposta, ou da ordem imposta pela palavra. Geração que privilegiava a comunicação não-verbal e a des/ordem que esta instaura no solo da tradição grega. Diziam que era preciso descongestionar a vista e o ouvido da palavra – parece que foi a ordem geral – mas para isso é antes preciso massacrá-los com o som. O som que rompe tímpanos desune verbalmente o grupo, mas o une comunitariamente na curtição.
Seria importante começar a pensar as manifestações artísticas da nossa época não tanto em termos de leitura, mas em de curtição (novas regras de apreensão do objeto artístico). Uma substitui a outra e inaugura um novo reino de gozo, de deleite, de fruição, de prazer estético. Visto que o interesse da geração do poeta baiano Waly Salomão (1944 – 2003) é o de exigir do leitor que curta o texto, utilizando de diversos recursos para causar o que os formalistas russos chamam de “estranhamento”, cujo título do artigo explica bem o espírito da curtição, “a arte como artifício”. Esse efeito assinala a quebra do automatismo encontrado na linguagem de todos os dias, e abre campo para a invenção e o exercício total da liberdade de criação. Como diz Chklovski: “o artifício da arte é o artifício da singularização dos objetos e ele consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção”.
Daí que o artista da curtição prefira trabalhar o fragmento, a minúcia, o babado, esquecendo o que o escritor tradicional chamaria de alinhavo do texto, a costura do texto. São realmente textos-retalhos, desalinhavados, que temos diante de nós. Com isso, caíam num barroquismo formal, que se expressava pelo manuseio amaneirado e excessivo da frase e da palavra, fazendo com que ambos adquiram cambiantes arco-íris de fragmento para fragmento, ou mesmo, dentro do próprio fragmento. Nenhum desejo de sistematização do estilo, a não ser a sistematização do estranho, do novo, do inesperado, da surpresa, da falta de estilo. Disso deriva o fato de que assim como se curtia o som em música popular, Waly Salomão, parece nos dizer que devemos curtir sobretudo a sonoridade da palavra. Talvez não fosse impróprio chamar esta arte de arte do significante (aproveitando a dicotomia saussereana). Pelos recursos técnicos serem menos comuns dentro da seriedade da literatura, e típico de uma estética de símbolos, onde mistura Dadaísmo com Concretismo.
Waly Salomão, como poeta e letrista, prefere trabalhar com a gíria, com o linguajar urbano, se inscreve num mundo mítico que é, ou bem o da grande cidade (com apropriações dos formadores de opinião, os jornais, ou bem o do espírito grego. Em Me Segura que dou um Troço e Gigolô de Bibelôs pretende descrever a realidade dos marginais que marcam encontro nas prisões, um roteiro turístico do Rio de Janeiro, - o underground e a superfície, o fundo e o superficial. Uma comunicação através de linguagem e mitos que o poeta surpreende com graça, rapidez e delírio.
Suas letras refletem o gosto pelos símbolos românticos, seja pela presença de elementos da natureza, pela onomatopéia ou nas associações de cor com zona erógena feminina, fecundidade, erotismo e a fé na vida:
“Ó abelha rainha/ Faz de mim um instrumento/ De teu prazer, sim, e de tua glória/ Pois se é noite de completa escuridão/ Provo do favo de teu mel/ Cavo a direta claridade do céu/ E agarro o sol com a mão/ É meio-dia, é meia-noite, é toda hora/ Lambe olhos, torce cabelos/ Feiticeira, vamo-nos embora/É meio-dia, é meia-noite/ Faz zunzum na testa/ Na janela, na fresta da telha/ Pela escada, pela porta/ Pela estrada toda à fora/ Anima de vida o seio da floresta/Amor empresta a praia deserta/ Zumbe na orelha, concha do mar/ Ó abelha boca de mel/ Carmim, carnuda, vermelha/ Ó abelha rainha/ Faz de mim um instrumento/ De teu prazer, sim, e de tua glória./ E de tua glória/SIM/ E de tua glória/ E de tua glória/ SIM!!!
(Mel, de Waly Salomão e Caetano Veloso, de “Uma Dúzia e Meia de Canções e mais uma de Quebra”, página 148, de Gigolô de Bibelôs, 1983, Coleção Circo de Letras, editora Brasiliense.)



Clique no link abaixo, para ver o clipe de João Bosco interpretando a música Memória da Pele, uma parceria com poeta baiano Waly Salomão.







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