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Fio tenso entre o vazio e o pleno






“Involuir até a forma primeira. / Procurar a pura essência. /
Achar o substantivo/ no emaranhado de detalhes.”

[ Intenção, Edna Rezende ]





O Brasil, ao contrário do que muitos imaginam, tem produzido pouquíssimos poetas líricos. Talvez, o último lírico puro que tivemos foi ainda Casimiro de Abreu. No correr dos séculos, poetas que podiam ter sido excelentes líricos deixaram-se iludir pelo som cavernoso da tuba épica, escrevendo longos poemas que só nos enchem de tédio. Outros enveredaram pela poesia dramática, pela poesia patriótica, pelos hinos e pelas odes (“Nobre animal, o poeta”), sem que muita coisa restasse de tanto esforço bem intencionado. Mesmo as elegias, que já foram moda, só resistem quando um pouco mais que o talento as legitima.
Apesar da poesia lírica ser a que apresenta maior resistência à passagem do tempo, apurando-se e quintessenciando-se com esta (em mais de um sentido, a grande lírica do Ocidente foi produzida pelos trovadores medievais), os tratados de estética e os manuais de arte poética insistem na velha superstição dos gêneros maiores e menores, como se Homero, Virgílio, Dante e Camões houvessem deixado prole à altura. Os conteúdos da lírica, seu inato individualismo, sua aderência às emoções e seu imediatismo afetivo levam os teóricos à presunção de que o lírico seja um eterno disponível, um improvisador bem dotado, vivendo de inspirações momentâneas; ou, em linguagem mais moderna, um receptivo e não um produtor de mensagens, um recriador e não um criador. A verdade é bem outra: além do talento, do gênio, que marcam os grandes líricos, eles devem possuir rigoroso domínio da forma e ter uma agilidade criadora que lhes permita passar de um estado a outro, de uma inspiração a outra, sem afundar nos lugares-comuns que só fazem engrossar o lixo poético.
Um lirismo quase puro como o de Mario Quintana é raro em nossa poesia moderna. Ele soube manter-se fiel ao seu gênio poético, a sua vocação lírica, quando tantos em torno dele se esgotavam em caminhos equivocados. Autêntico, elaborado e musical, ele tornou-se o que é, não só um dos maiores poetas brasileiros, como também um dos grandes líricos contemporâneos – irmão inteiro dessa família que se faz compreender em qualquer tempo e em qualquer língua.
Até hoje, ainda me surpreende o fato de que, no meio de nossos milhares de exegetas universitários recém-formados, poucos se deram ao trabalho de mergulhar as mãos nessa verdadeira arca de preciosidades poéticas. Criou-se, entre nós, a mística de que só se deve estudar os autores difíceis, constituindo dificuldade, para esse critério, o hermetismo da linguagem, o inusitado do vocabulário e da sintaxe, que de fato permitem elucubrações e interpretações, no mais das vezes, gratuitas. Não só Quintana, Drummond entre outros poetas e alguns romancistas brasileiros têm pago por parecer demasiado fáceis para a sede decifratória de nossos escoliastas.
A verdade é que, sob o campo visual da poesia de Edna Rezende,  esconde-se uma teia infinita de raízes, um entrançado de sentidos, duplos sentidos, alusões, elipses, subentendidos, um código vivencial de cuja tradução o poeta é o único a possuir a chave. E sua aparente simplicidade formal, aos olhos de leitores mais atentos, encobre uma extraordinária riqueza de recursos poéticos, de sutilezas verbais, de soluções rímicas e rítmicas; revela-se, também, o conhecimento, por parte da poeta, das grandes fontes da poesia universal.
Louvemos a intenção da poetisa por não obedecer a uma ordem cronológica dos poemas, segundo uma subjetiva ordem temática. Diluiu a intenção original para evitar o artificialismo na obra ou pior, o didatismo. Procura, no entanto, exemplificar o elegíaco, o lírico, o descritivo, a prosa, o chiste, a recordação, a saudade. Tudo em Edna Rezende é tão bom, que o leitor pode lê-la em qualquer sentido, indiferente à numeração das páginas.
Esse novo, essa rasura que a poesia de Rezende traz, talvez, se possa chamar de uma transcendência do banal, uma aceitação e um entendimento da expressividade da vida diária e feminina. Nela, cabem todos os temas que têm alimentado a poesia de todos os tempos: vida, morte, sonhos, comunhão mística com Deus e com as palavras. Mas, é na apreensão dos pequenos gestos e das situações particulares que ele imprimirá sua marca e diferença poéticas.
Contrariando a tradição literária e, igualmente, contrariando o conselho de um de seus mestres ("Não faça versos sobre acontecimentos", diz Drummond - em sugestão que ele mesmo rejeita), Edna resgata para a poesia os acontecimentos mais ínfimos, a imagem de Deus humanizado, a mulher - seus afazeres e haveres. A transcendência está, também, no modo como Edna realiza uma estética em que se disseminam os resíduos da linguagem, os usos coloquiais da língua, os objetos e as expressões do universo kitsch, os seres e os elementos naturais.

“Ontem,/quando você entrou pela porta da frente,/ eu procurava mercurocromo pro pé do menino./ Ao sentir sua presença,/ tive vontade de correr/ pra ver você./ De fritar seu bife,/ de procurar toalha limpa pro seu banho./ De perguntar se estava bem/ ou se havia se sentido mal,/ tão tresnoitado./ Até lhe dar uma flor de papel crepom/ (que aliás, eu já nem tinha mais)/ passou pela minha cabeça./ Mas não fiz nada disso./ Saí pra comprar o mercúrio,/ que eu não achei no armário./ Apenas lhe desejei boa-noite.” [Confissão, pág. 25]

De onde vem a força desta poesia, que se constitui como um fio tenso entre o vazio e o pleno? Como pode ser construída uma obra com o material que a língua esvaziou, que a ideologia empobreceu, que a cultura refugou e que, ainda assim, surge com um acento forte no conjunto da produção poética das últimas décadas? Como se faz uma poesia em que até mesmo os descuidos formal, frequente, sobretudo, nos poemas mais longos, acaba por ser parte da composição e a ela se integra naturalmente? A estas perguntas, talvez, venha em resposta o princípio de entrega e de verdade de que se compõe a poesia rezendiana. Verdade, não como certeza, mas como revelação de uma voz profundamente enraizada no chão da província, compreendida como categoria cosmogônica, força telúrica e mítica. Nesse sentido, sua poesia resgata o conceito benjaminiano de experiência, ligada à comunhão e à funda cumplicidade com o homem e com sua existência concreta, tecida nas relações que os atos cotidianos geram.
Além dessa capacidade de criar com o comum é possível observar-se, também, uma progressiva adesão à vertente religiosa que, presente em "O Sorriso Atrás da Porta", vem adquirindo maior relevância a partir do início do livro "Gênesis" e se transforma na dicção absoluta de "Um Nome", na página 79. A religiosidade, que banhava os objetos, os seres e os elementos do mundo natural, centra-se, nesse último livro, na imagem de Pai/Getsênami. O sagrado deixa de ser o foco iluminador do banal para tornar-se o eixo a partir de onde fala o sujeito lírico, assumindo-lhe a própria fala.
É possível circunscrever o universo temático rezendiano em, pelo menos, quatro grandes eixos. Um primeiro diz respeito à família literária com a qual sua poesia dialoga, em que se incluem aqueles autores e obras com que, explícita ou implicitamente, ela mais se identifica. Encontram-se aí a filiação a Machado de Assis, a Mario Quintana, a Adélia Prado, a Carlos Drummond de Andrade e, sobretudo, a referência de Alphonsus de Guimaraens, no poema “Perda” que traz a epígrafe do seu famoso poema “Ismália”, com o qual dialoga no seu arremate:

“Meu rosto nunca esteve mergulhado/ na calmaria das águas brilhantes./ Como querer, agora, a loucura de Ismália?” [ Perda, pág. 35]


Outro eixo, que polariza esta obra, diz respeito à tematização da palavra poética, uma de suas mais importantes vertentes. É aí que surge o aproveitamento literário das formas de linguagem coloquial e popular, dos resíduos de linguagem, no sentido de que esse material se constitui das expressões mais banalizadas, recuperadas pela poesia e revestidas de novas cargas de significação. Um terceiro eixo organiza-se em torno do elemento "província", visto não apenas como lugar social e geográfico, mas como universo cosmogônico, suporte das experiências plasmadoras do seu fazer poético e metonímia do grande mundo [Inhapim, pág. 53, Cidade, pág. 68].
Outro eixo constitui-se nos temas recortados sob a égide de Deus, do tempo e da memória quando realizam a síntese entre os mitos de Deus e da poesia, esta última vista como a encarnação humana da palavra fundadora: a palavra divina. A poetisa faz-se porta-voz e instrumento da criação, aproximando-se assim da vertente romântica fundadora de nossa literatura.

“No princípio/ o Espírito pairava sobre o vazio./ Depois,/ Sem antecipações/ e sem atrasos/ - porque no ritmo incomparado –/ o Universo se fez.”[Gênesis, pág. 15 ]

“Pai,/ não afaste de mim este cálice./ É preciso sorvê-lo,/ até o fim.”
[ Getsêmani, pág. 74]





O Sorriso Atrás da Porta
Edna Rezende

Poesia brasileira
80 páginas
Escrituras Editora,
São Paulo - 2011


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