Pular para o conteúdo principal

Veneno antimonotonia





A "cegueira" nos impede de abrir as portas da percepção




Há 1 ano e 12 dias, morria aos 73 anos, internado na enfermaria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o poeta Roberto Piva, que sofria do Mal de Parkinson, uma doença que atinge hoje cerca de 200 mil brasileiros.
Nos últimos anos, Piva teve suas obras completas reunidas pela editora Globo em três volumes: Um Estrangeiro na Legião, Mala na Mão & Asas Pretas e Estranhos Sinais de Saturno. O escritor Bruno Piffardini da Rocha Brito, estudioso da obra de Piva, publicou um ensaio sobre o poeta especialmente para o Blog do Café Colombo. Piffardini, escritor e crítico literário, defendeu há três anos, uma dissertação de Mestrado sobre a poesia de Roberto Piva, pelo departamento de pós-graduação em letras da UFPE. Publicamos, logo abaixo, fragmentos da análise crítica corrosiva e reveladora do escritor:
“Ainda que sofrendo atentados da ordem (política e intelectual) vigente para que se forçasse seu silêncio, sendo relegada ao benfazejo caminho do underground literário, é inegável a importância que teve a década de sessenta, do começo até o fim, na formação da nova literatura, presente seja na academia, seja nas ruas. Ora, justiça seja feita ao poeta paulista Roberto Piva, que contribuiu em grande parte com os alicerces dessa nova maneira de encarar a arte poética.
Agradeçamos a Alcir Pécora pelo grato esforço de reunir recentemente a obra completa de Piva, em três volumes: Um estrangeiro na legião, Mala na mão e asas pretas e Estranhos sinais de Saturno, através dos quais Roberto Piva conseguiu atravessar o nevoeiro. Ainda que não o suficiente. Não é possível dizer que Roberto Piva seja um poeta invisível, mas também seria miopia acreditar que o merecido reconhecimento de sua obra esteja bem-estabelecido. A academia tem se arejado, já não é mais aquela dos tempos do ensaio “O surrealismo no Brasil”, de Antonio Candido (publicado em 1945 e que está no volume Brigada ligeira), que relegou ao limbo Rosário Fusco, autor de O agressor, primeira obra brasileira declaradamente surrealista; entretanto, permanece uma certa resistência dos estudos literários a tudo aquilo que de certa forma desvia e se safa de enquadramentos que se estabelecem para definir o “canônico” – palavra de alta periculosidade em bocas mal-preparadas. Existem poucos trabalhos realmente profundos da obra (devidamente profunda) de Roberto Piva, sendo os melhores escritos por seus amigos e companheiros, como os ensaios de Claudio Willer. A partir disso, a visão corre o risco de se embaçar definitivamente. Quanto tempo foi preciso para que sua obra fosse reeditada?
E quantos outros invisíveis não estão por aí, e que contribuíram para a diversidade que existe na produção atual, também “invisível”? Campos de Carvalho, autor de A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro (cuja montagem teatral por Aderbal Freire Filho deu uma passada cá por Recife), deixou uma obra poderosíssima e totalmente mal-divulgada. Tomemos um exemplo fresco na memória de todos nós: lembre de seus tempos no colégio. Lembre de quantas aulas você teve sobre a carta de Pero Vaz de Caminha. Quantas aulas seguidas lendo Marília de Dirceu em voz alta. Quantas aulas tivemos sobre a literatura pós-Geração de 1945? Ouvimos falar (sussurrado) em Ferreira Gullar, aprendemos o “Beba coca-cola” e que tinha um cara chamado Cacaso, cuja maior informação foi saber que sua professora o achava gostoso. Torquato Neto? Ana Cristina César? Caio Fernando Abreu? Ignácio de Loyola Brandão? Ninguém sabe, ninguém viu. Mas sabíamos (ou éramos forçados a saber) os pseudônimos dos arcadistas mais obscuros – e que continuaram obscuros…
Existe ainda a mania constante de coroar e entronizar o artista em seu leito de morte ou sobre sua cova. É quando todo o obscurantismo lançado sobre ele em vida, quando estava em atividade e acessível (ou seja, quando de fato vale a pena respeitá-lo) se dissipa como que por uma luz divina, fazendo com que todos pensem “por onde você andou esse tempo todo?”. Completa ignorância ou total covardia? A única certeza é que é um vício execrável. A morte canoniza quem sempre foi subterrâneo, talvez porque só assim um subterrâneo não revide à bajulação. Ou talvez porque isso renda matéria pra jornal. Nos últimos dias, Roberto Piva esteve muito doente. Troca de e-mails entre os amigos e entusiastas, atualizações constantes em blogs amigos. Situação grave, condições precárias.
Mas então eis que a mídia se aproxima, como um chacal voraz. Um frio na espinha. Todos têm seus necrológios prontos nos jornais, a qualquer sinal de morbidez os jornalistas duelam para ver quem saca a notícia primeiro, pronta há trinta anos. João Gordo um dia foi mencionado por William Bonner – uma pré-homenagem póstuma no Jornal Nacional. Até o João Gordo. O pavor da apoteose batendo asas fétidas: notícia na TV, três homenagens, duas comunicações na faculdade. E de volta ao silêncio tumular.
Não, senhores, Roberto Piva não merece isso. Sua obra e sua pessoa são importantes demais para serem dobradas por convenções catedráticas miopemente ortodoxas, e imensa demais para uma retratação póstuma. Celebremos o poeta-xamã Roberto Piva, como devemos respeitar todos os poetas-xamãs. Celebremos enquanto eles perambulam pela Canuto do Val, pela Conde da Boa Vista, enquanto o pulso pulsa.”

P.S.: Uma receita, de targa preta, para os poetas escoteiros piegas, provincianos e de pés-quebrados, tomem um pouco de “veneno antimonotonia” do Piva aí:






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na