Salon ( 1859 ) litografia de Honoré Daumier
Sem o prestígio de antes, de moral baixa,
entre a
reclusão na universidade
e a moeda fácil da resenha, a crítica patina
e procura a
si mesma. Ou apenas ensaia formas
mais adequadas à indústria cultural de hoje?
Mário de Andrade dizia que o crítico
era bom apesar do método. As chamadas questões de método não o enredavam mais
do que o necessário, e embora tenha sido, mais do que ninguém, fino e, às vezes,
até meio “leniniano” estrategista da luta literária e cultural entre nós,
sempre andou meio alheio aos pontapés que, volta e meia, trocavam os homens da
literatura e da crítica entre si. Por exemplo, Afrânio Coutinho, crítico
togadíssimo, reitor, o homem da divisa “letras para o desenvolvimento”, puxador
do new criticism na universidade (“o que importa é o objeto, não o sujeito, a
crítica é da esfera da ciência”), versus Álvaro Lins, homem de letras à
francesa, embaixador,para quem a crítica era uma aventura da personalidade do
crítico (a sua era flamante), e algo de fundo e feição sempre impressionista.
Mário alheio. Não era com ele esse “TER literário”.
Ou em 1943, quando Oswald de Andrade
andou se pegando com Antônio Cândido, cujo rigor crítico e dialética elegante
puseram a nu as insuficiências da obra do autor de João Miramar (todo o grupo
de Antônio Cândido recebeu então a carga do terrorismo verbal de Oswald, que
passou a chamá-los de “chato-boys”), Mário de Andrade também não se mexeu.
Não era com ele, nem os bate-bocas
nem as querelas em torno de scholars e impressionistas, togados e homens de
letras, professores e jornalistas. Da crítica parecia que pedia apenas que não
fosse esse “aqui jaz” dos livros, mas que fosse a inteligência das obras. Como
ele próprio fez com O Ateneu, de Raul Pompéia, numa das mais completas, senão a
mais, análises literárias da história da crítica brasileira.
Mário de Andrade, que continua meio
patron da cultura brasileira, também aí tinha razão. Isso de método, se o
objeto ou o sujeito, a obra ou a cabeça do crítico (essas coisas se dão à luz
no ato e na aventura da leitura), se foi algum dia questão cerrada a dividir os
críticos e ensaístas, hoje não é mais o ponto. Passada a catatonia
estruturalista, essa sim um niilismo de cátedra, uma “nadificação das cátedras,
e cursos de literatura, não há muita gente mais se batendo abertamente por
essas coisas. Quanto às premissas e métodos, houve algo como um discreto
“liberou geral”.
Barbárie
O fenômeno não inquieta pouca gente.
Do lado acadêmico, os professores olham severos para as mutações porque passou
a crítica literária entre nós, sobretudo nos anos 80: das três funções da
crítica, análise, interpretação e julgamento, só restou a última. Mas a forma
de produzir esse julgamento, reduzindo-se a uma apreciação sumária, sem um
exame mais detido do texto, revela de modo brutal o gosto ou a ideologia do
crítico, ou simplesmente o grupo de apoio a que pertence. Sem mediações que relativizem
a sua opinião pessoal, o jornalista acaba virando um agente da barbárie. Todo
documento, como declara Walter Benjamin, estrategista também da luta cultural, pode
ser tanto um documento de cultura como de barbárie. A área acadêmica, de um
modo geral, não esconde o seu quê de terror e tremor diante da banalização da
crítica e do amesquinhamento via resenha.
Vou pelo pessimismo abissal da
Escola de Frankfurt para explicar a figura do crítico apenas como “fermentador
da onda consumista”. A nossa época é ainda aquela a que se refere o pensador
Theodor Adorno, “em que a indústria cultural transforma tudo em mercadoria, e o
escritor e a literatura hibernam”. Assim vejo na figura do resenhista um fator
de excitação do efêmero. O crítico, esse que estabelece um diálogo constante
com o passado, das obras umas com as outras, pois toda a literatura é copresença
do que já foi escrito, inexistiria. Ou diante das fissurantes exigências de
atualidade das editorias da cultura dos jornais e da redes de televisão
hiberna.
Paulo Francis, leitor antigo e
assíduo de Edmund Wilson (e, mais ainda de Lionel Trilling, da mesma geração do
autor de Rumo a Estação Finlândia, e talvez melhor crítico do que ele), bate no
ponto: “A crítica humanista, essa que vê e pensa a literatura como algo
relacionado à vida dos indivíduos e ao conjunto da vida social, a crítica de
Tristão de Athayde, ou Franklin de Oliveira, entre outros, é quase inexistente
hoje no Brasil”. Embora como representantes dessa crítica de visão de mundo
humanista ele só veja hoje dois nomes no país, Wilson Martins (“cuja História
da Inteligência Brasileira é fonte irresistível de referência”) e José Onofre,
fica com ela. Jamais com a crítica acadêmica: “A crítica universitária,
especializada, não me interessa em nada. Os acadêmicos são insuportáveis.
Quando se consegue desbastar, furar aquela metodologia toda que eles nos impõem
nos seus artigos, deparamos com o mais absoluto óbvio, com a completa ausência
de uma ideia, de uma percepção. O Folhetim, suplemento extinto de um jornal
paulista, é um exemplo disso. É a coisa mais ilegível que conheço”. Para
Francis, a única crítica que merece existir é aquela que aprofunda, reflete e
elabora isso de que “a literatura sempre viveu, o entrelaçamento dramático de
pessoas em situação de opressão tentando se libertar”. Se ele recusa a resenha,
por suas conhecidas limitações, também não fica com o tratado acadêmico: “A
literatura, e a crítica consequentemente, tem que estar relacionada com a
sociedade, com a vida das pessoas, e a crítica especializada não tem nada
disso. A USP é a coisa mais irrelacionada que há”.
Poder
de espanto
Mesmo áreas interessadas em
princípio na maior agilidade das formas de divulgação do livro, como os
editores, guardam suas distâncias com relação às formas hoje predominantes nas
páginas de cultura dos jornais, revistas e da internet. Num mercado editorial
no estágio do nosso, com o crescimento dos inéditos ou novos autores, é
necessário que haja também um serviço jornalístico mesmo, com informações sobre
livros, autores, estilos. Isso para um público mais virgem. De outro lado,
separadas as coisas, é necessário que haja propriamente mais crítica literária,
até com uma feição mais ensaística. Como gênero literário. O problema é o
hibridismo superficial entre a informação mal dada e a crítica mal realizada.
Vejo uma orientação recente, no
sentido de instituir formas mais antenadas, cosmopolitas, de resenha, que faça
as conexões internacionais, transcendendo o regionalismo, a base democrática da
literatura.
Feitas as contas, melhor do que
jogar pela janela a água nem sempre muito clara das resenhas, pois pode haver
inclusive vida lá dentro seja tentar deslocar os limites. Mais do que suspirar
pela cabeça vienense de Otto Maria Carpeaux, pelas bravatas de Álvaro Lins,
talvez seja melhor tentar entender as formas culturais que, neste momento da
história e do processo cultural do país (a economia assim, a luta de classes
assado, a internacionalização da indústria da cultura, etc.) vieram substituir
as formas, digamos, imponentes de crítica literária. Não é essa afinal a tarefa
essencial, primeira, da crítica: tentar discernir as formas na história e a
história nas formas?
A figura do crítico literário é
anterior à divisão entre universidade e imprensa. O crítico como instituição,
como universidade individual, é anterior a isso. Os críticos como Carpeaux,
Álvaro Lins, e outros. Esse lugar ocupado pelo crítico como mediador universal,
como guardião da literatura, desapareceu, na medida em que a própria literatura
também perdeu o papel central que ocupava na cultura, em virtude da
fragmentação da sociedade e da produção cultural. Como o poeta de Baudelaire,
que vê a sua aura cair no chão ao atravessar a rua, também, o crítico parece
ter perdido a sua.
As formas novas, que têm surgido a
partir dessa destituição da figura do crítico como “universidade individual”,
devem ser vistas com o máximo de consciência e capacidade crítica possível, mas
também sem nostalgia. Sejamos mais apocalípticos do que integrados, ou o
contrário, há algo de fato cultural consumado aí. Se é verdade que a crítica
perdeu a sua “aura”, caída no chão por causa dos deslocamentos da indústria
cultural, isso não importa tanto. Importa que não perca o que é fundamental:
essa capacidade de espanto diante das obras.
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