- Até parece que gente morta tem importância nesta cidade.
- Não são os mortos, é o jogo político que se pode fazer com eles. Todo um sistema de trocas, barganhas, acertos e injunções.
Neste local, havia movimento. Que aumentou gradualmente, a ponto de o caminhão andar muito lento. As pessoas olhavam espantadas para nós. O mesmo olhar de medo e surpresa. Todos carregavam alguma coisa. Um saco, uma caixa, cadeira, bastões de plástico e embrulhos.
De quadra para quadra, mais e mais gente. Carregavam lanternas feitas de arame e lata, com uma vela dentro. Uma luz débil que mal clareava o caminho. Lembranças de antigas procissões de semana santa, o senhor morto na sexta-feira, os fiéis com suas velas e o canto fúnebre.
Desta vez, não havia o canto, mas um murmúrio denso, compacto, quase ritmado. E, acima de tudo, o mau cheiro. Pavoroso. Mefítico. Havia um professor de português, no ginásio, muito pedante e empolado. Usava esta palavra a propósito de tudo, e todos. Para ele, era um insulto.
Para mim, ficou como um símbolo de mistério, um código. Sinônimo de coisas ruins. É uma palavra que nem todos os dicionários registram. Daí a sensação que ela é especial. Mefítico labirinto negro. O que chega até mim é um cheiro de morte e decomposição. De lixo e excrementos de esgotos e suor. Um odor que exala das bocas de lobo entupidas. Como diz a letra de Trastevere, do Milton Nascimento: “a cidade é moderna, diz o cego ao seu filho, os olhos cheios de terra, o bonde fora dos trilhos...”
Cheiro acre, penetra. Cortante. Como esse povo suporta? A massa é cada vez mais compacta, até que desembocamos num imenso terreno. Se eu estivesse assistindo a um filme não acreditaria. Montanhas de lixo, repletas de gente encarapitada. Amontoados de quinquilharia.
Montões de plástico, colinas de latas. Pilhas de ferros velhos, entulhos, refugos, bugigangas, trastes, badulaques, rebotalhos. Não sei se parecia mais um armazém geral de bagatelas ou uma grande feira de migalhas, percorrida por uma gente incompreensivelmente entusiasmada.
Povaréu miserável, maltrapilho, piolhento vagueava pelas aleias apodrecidas. Com o mesmo mal-estar e perplexidade que sentia. Como se as montanhas de inutilidades fossem gôndolas de produtos raros, especiarias. Aquele sabor azedo, indigesto e característico dos sanduíches da realidade, o povo da rua olha a sociedade pelos buracos de seus calçados.
Grande parte estava reunida em torno de fogueiras. Queimavam plásticos e havia mais fumaça que fogo. Maltrapilhos em bandos escalavam as montanhas de lixo, catando, catando. Paravam, observando o caminho atravessando lentamente através do vale cinzento de imundície. Dos monturos, as pessoas continuavam a me olhar, inquietas e desconfiadas separando objetos recicláveis. Assim é a insustentável cultura da miséria.
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