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Pedaços de Mim










Mas alguma coisa se quebrou em mim, e fiquei com o nervo partido em dois. No começo, as extremidades relacionadas com o corte me doeram tanto que fiquei muito pálido de dor e perplexidade. Os lugares partidos foram, porém, cicatrizando. Até que, friamente, eu não me doía. Mudei, sem planejar previamente. Antes, eu te olhava de meu dentro para fora e de dentro de ti, que pro amor, eu adivinhava. Depois da cicatrização passei a te olhar de fora para dentro. E a me olhar também de fora para dentro: eu me transformara num amontoado de fatos e ações que só tinham raiz no domínio da lógica. A princípio, eu não pude associar-me a mim mesmo. Cadê eu? Perguntava-me. E quem respondia era uma estranha que me dizia fria e categoricamente: tu és tu mesmo. Aos poucos, à medida que deixei de me procurar fiquei distraído e sem intenção alguma. Eu sou hábil em formar teoria. Eu, que empiricamente vivo e dialogo comigo: exponho e me pergunto sobre o que foi exposto, e coloco a face para bater e contexto, faço perguntas a uma audiência invisível e esta me anima com as respostas a prosseguir. Quando me olho de fora para dentro sou uma casca de árvore e não a árvore. Eu não sentia prazer. Depois que recuperei meu contato comigo é que me fecundei e o resultado foi o nascimento do alvoroçado de um prazer todo diferente do que chamam prazer.
Eu vivo as diversas fases de um fato ou de um pensamento, mas no mais fundo do seu interior é extrassituacional e, no ainda mais fundo e inalcançável, existe sem palavras, e é só uma atmosfera indizível, intransmissível, inexorável. Livre das velharias científicas e filosóficas.
Eu, Caio Pego, como um nome registrado e matéria transitória, sou um espantado num mundo sempre novo. A hora deste instante nunca será repetida até o fim dos séculos.
Sou o contemporâneo do amanhã. Quando fico sozinho muito tempo,  de repente me estranho, assusto e me arrepio todo.
De agora em diante quero mais do que entender: Eu vou superentender  e, humildemente, imploro que esse dom me seja dado. E digo ao meu Eu profundo: Quero compreender o próprio entendimento. Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe. Estou em plena comunhão com o mundo.


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