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Dentes Cariados da Memória III


 
 
 
 
 
 
         Passo os olhos pelo jornal impresso e Internet, estarrecido com as estatísticas de mortos. Todos os dias, com um prazer necrófilo, examino as causas. Morre-se do coração. Infartos, derrames, todo tipo de complicações cardiológicas aparece nas causa mortis. Ou seriam mentiras? Dissimulações. E por que gente com vinte anos ou menos ainda, tem o coração estourado? Não dá para acreditar. E de que adianta não acreditar?
         Vejo esta foto agora e percebo como o fotógrafo de formatura, tinha firme a sua mão e agudo o seu poder de observação O homem entusiasmado ajeitou várias vezes o rosto de Helena, empurrando o queixo para cima, numa dessas poses de porta de circo ou vitrine de fotógrafo artístico.
         O olhar doce e sereno de Helena nunca mais foi retratado deste modo. Era ela delicada e cordial, porém não impulsiva. Ao menos, não era imprevisível nos primeiros anos.
         Será que eu a transformei de tal modo? Ou foram as situações à nossa volta? E... vê o mundo de um modo diferente do meu, gostava de tranquilidade, do sossego, da serenidade de espírito, preocupava-se com a mente em harmonia, esquecendo-se da estabilidade financeira. O mundo tinha valores sólidos que custavam a mudar. Podia-se aceitá-los, seguros que durariam ao menos uma vida.
         E quando mudavam, existia toda uma preparação, as pessoas eram condicionadas, nada explodia subitamente, assustando. Valores simples, às vezes. Algo assim como as festas populares onde as pessoas costumavam usar alguma coisa feita de couro novo e de pano azul. Ou queimar palha benta para a chuva acabar. Costumes simples, cerimônias, rituais, hábitos, coisas que permaneceram por séculos, passadas de avô, a pai, a filho, a neto, bisneto. Gestos familiares espontâneos, falas, comidas. Permaneciam. Deixavam uma impressão de solidez, favoreciam a serenidade, eram certezas.
 

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