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Um Certo Reflexo Branco




 

Cinquenta anos diante de um espelho:
- Você parece muito deprimido. Algum problema?
(Foi como se tivesse sido apanhado em flagrante, com as calças na mão. Rapidamente, desviou os olhos para a porta, ao mesmo tempo em que testava o trinco. Precisa certificar-se de que estava trancado. Depois, olhou em volta e percebeu que as coisas continuavam em ordem. As toalhas coloridas continuavam no lugar de sempre, a tampa da privada continuava no mesmo lugar, a cortina do banheiro era a mesma de antes e continuava lá. Sim, estava só. Voltou a encarar a sua imagem refletida. Tinha mesmo necessidade de saber o que ela estava refletindo.)
- Acho que estou precisando de uma massagem ou chá de raiz de alface com erva cidreira. Não consigo dormir.
- Você está tenso demais. Algum problema?
- Digamos que é o cansaço. Estou cansado.
- Nada mais natural. Com a vida que você leva, não é pra menos. Admita essa evidência. Volte para a cama, faça de conta que está dentro de uma concha, pense nisso com toda a intensidade possível, que o seu sono volta. Vai ser um sono tranquilo, você vai ver.
- Eu não tinha este rosto...
- O que foi que você disse?
- Estou me lembrando de um poema, que começava assim.
- Bom, o que se passa, afinal?
- É que eu estou contemplando um rosto branco de mágoas, decepções, frustrações e o vazio pela falta de referências. Sinto-me sem procedência...E isso está me deixando muito... muito espantado, entende? Estou com medo.
- É tudo o que você consegue ver?
- Em linhas gerais, sim. Também vejo um menino de 14 anos, cheio de sinceridade e timidez, que uma vez escreveu: “Quando a gente se olha no espelho, somos nós mesmos que estamos vendo?”
- Neste bairro deve haver outros sonâmbulos iguais a você. Agora mesmo ouço música, uma melodia muito triste, que vem de algum lugar.
- É bonita, não acha? Lembra a procissão de Corpus Christi, coisas assim. Se chama Até quem sabe de João Donato. Ele está tocando aqui dentro de casa mesmo, ali na sala. Pus o cd pra ver se me acalmava. Mas foi pior. Esses caras meio jazz são muito enfossados.
- Bom, vamos ver se a gente se entende, se posso fazer alguma coisa por você.
- Obrigado, amigo. Eu sabia que podia contar consigo (riso).
- Pra começar, eu preciso saber como anda a sua vida.
- Qual delas?
- Comece pelo seu trabalho.
- Vai indo como o que ocorre com a “pororoca” dos rios. Ganho uns bons milhões de elogios por mês para por no site, todas as semanas via cabo, todas as desgraças do mundo. Guerras, atentados, assassinatos, mortes, miséria, caos, fofocas, terrorismo – o feijão com arroz internacional de sempre. Como você sabe, eu trabalho na Internet.
- Sei, sei. Mas, me diz uma coisa: e as desgraças nacionais, digamos, as dores de barriga, os peidos e as lombrigas de seu vizinho, do cara que mora ao seu lado, o mau humor do porteiro do prédio mais próximo e a cara aporrinhada do motorista de ônibus, o problema de moradia da empregada, que tem três filhos para criar, sim, a casa e comida da mulher que lhe faz a comida, a sua comida, nada disso o preocupa?
- Lá vem você com fantasias. Eu vivo num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza.
- É verdade. Havia até me esquecido disso. Foda deve ser pra aqueles caras que vivem no Oriente, lá na Líbia, Iraque, na Índia, na África, e mesmo para esses que estão aqui nas nossas barbas, Paraguai, Uruguai, Argentina, por aí.
- Você agora está mostrando um mínimo de sensatez. Estou gostando de ver.
- Segundo capítulo: e sua vida com a mulher? Você gosta dela? Está legal?
- Hummm (aqui um coçar de cabeça, naturalmente notado pelo espelho.) Bem, ela gosta muito, me suporta, não é? Isso já não é mau.
- Você é tão insuportável assim?
- O caso é que eu bebo demais, ando sempre irritado, preocupado com a falta de estrutura, com o medo do amanhã. E neste exato momento, baixou uma angústia filha da puta em mim.
- Algum problema, então?
- Vários. Além dos já citados, tem o problema da virilidade. A sério: estou me sentindo muito inútil. Aquele negócio que nada do que faço, do que consigo me traga prazer e satisfação. É aquele papo de metas para atingir e, quando você chega lá, dá um tremendo vazio, um vazio que dói e agoniza. Numa enfileirada só, à parte os problemas domésticos, do stress pela falta de emprego e dinheiro, vem uma porretada de outras complicações: um cara que você não pode fazer nada por ele. Outro que foi embora e que nunca mais pode voltar. Outro que não aguentou a barra e cortou os pulsos. Outro que partiu violentamente para ficar rico em Tocantins e ficamos nós nem lá, nem cá, nessa corda bamba, a ter de escutar diariamente esse papo enjoado do status, da ostentação social e figuração.
- Posso lhe dar um conselho?
- Esteja à vontade.
- Reúna um grupo entre 7 e 10 pessoas e forme uma ong.
- Vou pensar nisso, prometo.
- Puxa, que cara é essa?
- Estou pensando. Me veio uma imagem, que, para mim, é todo o símbolo de uma era, algo assim como me vejo rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em seco com a vista baixa, um passo aqui, outro não sei quando, como se não existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro – e sempre ligado a um aparelho de televisão.
- Você também não vê mais nenhum horizonte?
- Às vezes eu olho para o sol. Ele está sempre nascendo e se pondo nos mesmos lugares.
- Juro que não estou entendendo. Até ontem estava tudo legal consigo, menos no trabalho, na sua social, etc. Esta cidade onde o charme, a inteligência, o sucesso e o brilho fazem sua guerrinha de nervos todos os dias. Você, que até ontem não tinha dado o seu pescoço para a pressão, de repente desaba e esperneia. Não entendo mais nada.
- É que a minha estrutura anda um tanto esculhambada.
(nenhuma resposta. Um longo e desesperado gemido ecoa pelo pequeno espaço do banheiro. O CD no aparelho já havia parado de tocar há muito tempo, de modo que agora dava para se ouvir o ressonar agitado de uma mulher, na casa ao lado. Sentado na privada, Caio se contorcia, agonizante, como um animal asfixiado.)
- Você está fazendo caretas. Sente dores?
(Pausa)
- Coisa estranha. Onde dói?
(Nenhuma resposta.)
- Sente dores?
(Isso durou uns três, cinco ou dez minutos. Ele não pode fazer ideia do tempo decorrido. Tinha sido um momento horroroso, um momento que parecia interminável. Agora, que tudo havia passado, se sentia bastante aliviado.)
- Uff! Foi como se eu tivesse comido pedra.
- É horrível. Precisa-se fazer muita força.
- Você está mais calmo, não?
- Sim, sem dúvida.
- Mais alguma coisa?
- Não, nada.
- Obrigado.
Os traços dos raios da lua cheia atravessavam os frisos da janela. Abri a janela, no céu, algumas estrelas brilhavam e eu achei que o negócio era comigo. Um cão, que passara o tempo todo gemendo para a lua, agora sorria. Bem diferente daquele cara que, muitos anos antes, atravessara ruas, avenidas, escadas e viaduto profundamente amargurado.
- A ilusão enganadora de se adaptar a um destino tão injusto. Mas isso continua. Que a imaginação fecunda. Com você, eu conheço o esquecimento. Como você, eu esqueci.
- Como você, eu tenho memória e conheço o esquecimento.
- Como você, desejei ter uma memória inconsulável.
- Por que negar a evidente necessidade de memória?
- Por isso, tenho o sintoma de ser devorado.
- Reparou que notamos as coisas que desejamos notar?
- E também o começo de um medo desconhecido. O medo da indiferença. Pensa neste fato como o horror do esquecimento.
- É preciso evitar pensar nas dificuldades que o mundo nos apresenta algumas vezes.
­- Se não, ele se torna irrespirável.
- Sem registro em papel e concreto, a corrosão do tempo apagará os nomes de minha memória. O tempo passará. O tempo somente. E virá o tempo em que não saberemos dar nome ao que nos unirá. O nome se apagará aos poucos de nossa memória... depois desaparecerá por completo.

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