Caio Pego vai reconhecendo sua casa
no acúmulo de objetos e as imagens que associam-se ou trazem referências. Na
verdade, conhecendo, descobrindo. As gavetas dos armários, de cedro,
perfumadas. Os papéis acumulados em escrivaninhas, apesar da recomendação da
Helena, sua mulher, de jogar logo fora. Há quantos anos não tiro nada das
gavetas? Só coloco, coloco. A memória de minha vida.
Que vida? Esta memória nunca consultada
que vai ser atirada ao lixo, assim que eu morrer. Que sou nada na ordem das
coisas. Papéis, fotos, contas, anotações. Que importância tem? Documentos do
quê? De um homem comum. Ora, a história jamais se interessou pelo homem comum.
E por que havia de?
Lembranças. A ternura ressurge numa
foto em preto e branco a mão. E os galos
não existem, porém continuam cantando. Vendo esse retrato sinto-me só. Aposto
que se eu dissesse isto aos meus amigos aqui, morreriam de rir. E o que parece
eles encontrariam argumentos para me provar que solidão está fora de lugar. Não
são tempos para ela. Diriam: estamos todos sozinhos, ninguém reclama. Só o
senhor.
Pode ser, mas não tenho nada a ver com
os outros. A minha solidão pesa. Pense em outras coisas, veja a situação à sua
volta, veja que não é possível ter mais sentimentos subjetivos. Imagino que me
diriam isso, parece um homem prático, concreto em suas propostas. Bem, pura
cogitação.
Entendo porque desejo eliminar as
lembranças. Alguma coisa ficou para trás, irrecuperável, e esta privação dói
dentro de mim. Para eliminar o sofrimento, elimina-se a memória. Uma cirurgia
aparentemente simples, única solução. Só que eu não consigo, tudo é vivo dentro
de mim. Agitado.
Helena está em alguma parte. Escondida
no seu próprio medo. Cada dia que passava, ela se assustava mais. Uma vez
chegou a me pedir que não fosse procurar emprego, que não me separasse dela.
Não sabia explicar porquê, assim que eu fechava a porta de manhã, de manhã ela
entrava em pânico.
Custava muito a se recompor. Fechava as
portas e janelas, passava trancas. Não era apenas pelo calor. As pessoas em
volta dela eram completamente estranhas, desconhecidas. “Vou ao supermercado e
não vejo um só rosto familiar, onde estão os nossos vizinhos, amigos e
parentes?”
Durante certo tempo comentamos a
multidão que cresce, dia a dia, na cidade. Conversávamos, serenamente, sem
medo, sem realizar o que estava se passando. Era uma constatação dos dias que
corriam. Não me preocupava de onde tais pessoas vinham ou porque estavam vindo
ou quem eram.
Comentários
Postar um comentário