Galo de Aldemir Martins
Enquanto o bafo
do mormaço bate em meu rosto, ouvi apenas o canto de um galo rompendo o
silêncio preguiçoso da tarde. Nem sei de onde viera, só sei apenas que estava
próximo de minha casa. É apenas um galo e seu canto que trazia um clima
brejeiro, de sopro vida e, isso dá uma alegria e tem uma beleza de vida simples,
natural e ingênua, sem compromisso. É um momento apenas.
Só sei que havia
um sol escaldante e, apesar do calor sufocante, que embaralhava meus pensamentos
misturando-os a um som que passa desapercebido no turbilhão de pensamentos, de
pernas e veículos correndo que giram a máquina registradora do mundo da
civilização. Em meio aos recursos visuais das placas e fachadas, aos múltiplos
sons, a cena se perdia. Será que alguém nota o galo que canta numa tarde, em plena
zona norte da cidade?
Como uma figura campestre
e exótica em contraste com a selva de cimento, aço, plástico e antenas. Esse
nosso personagem foge da coreografia da sinfonia concreta, porque traz uma
natureza morta em nosso horizonte sujo, embaçado pela fuligem dos escapamentos
e chaminés, talvez, seja um cantor para despertar... Por que aflora dentro de
mim, uma imagem adormecida, em sono profundo, quem sabe, anunciando um verde
esperança?
Eu tentava fixar
o galo com os olhos do espírito, ao jogo de intensa luz. Pode ser um momento
feliz, e em si mesmo talvez fosse, e aquele singelo quadro da natureza morta me
fez bem, mas uma fina, indefinível angústia me vem misturada com esse fenômeno
sonoro e fotográfico.
Devo estar
saudoso de minha infância na Vila Marina e no Parque São Judas Tadeu, quando o
galo cantou às 15h50. Mas deixei minha pouca alegria para mirar com um vago
sorriso perdido no espaço. Era um instante de graça e felicidade. Um momento de
raro prazer sonoro. Senti a necessidade de mostrar aquele fato raro às pessoas
que prezo: “Escutem, o galo cantar a essa hora...” Mas, o prazer daquela
audição me bastava. Porém, refleti que mostrar por mostrar ou, quem sabe, para
repartir aquele instante de beleza como quem reparte um doce, como sinal de
estima e de simplicidade; em sinal de comunhão ou, talvez, para disfarçar o
mal-estar com o vazio da vida atual.
Aquele som tão vivo era todo solto,
de meus ouvidos, uma palpitação no coração. Eu queria me aproximar, aquele
galináceo que anda sem rumo e seu canto, passando entre a cortina branca que
realçam os objetos em cima da mesa e a parede creme. Mas, a barra do dia entre
a cortina era uma vaga música dos tempos do chão de terra, a cerca de balaustre
e a mornidão da rotina dos dias interrompida pelas boiadas guiadas pelo
tropeiro, o aroma característico de fumo de rolo parado no ar misturava a
poeira amarelada que pairava no ar.
Na segunda-feira de carnaval, havia
nuvens leves, espalhadas em várias direções, como se durante a noite o vento
seco, semelhante a agosto, tivesse dançado ateu no ar. Depois, aos poucos, foi
se acendendo um carmesim, de cigarro de palha de milho, e sob ele o mar de
concreto espalhou o cheiro de roça. Imaginei o calor das famílias na varanda,
arrumando casamento e a vida alheia, do jeito de tribunal do júri, prestando
contas no confessionário do padre da paróquia, deixavam o galo, orgulhoso e
soberano no terreiro e galinheiro.
Mas o bem-estar leve, quase suave,
como se eu tivesse, de repente, despertado de um transe profundo, trouxe-me um
pensamento que aprendi com os antigos vizinhos e coleguinhas de escola: os
galos cantam entre às 4 ou 5 da madrugada, na alvorada de um novo dia,
sinalizando a hora do retireiro ordenhar as vacas no curral, enfim, os compromissos
da gente do campo. Será que o desrespeito do homem com a natureza onde
ocorreram as mudanças nas estações do ano, o excesso de asfalto que interferiu
no escoamento da chuva, o desmatamento das florestas, a poluição dos rios, a
migração de aves e animais à área urbana, alterou o relógio biológico dos galos
entre outras espécies da fauna? Um garoto dirá que o galo ficou desconfigurado!
O sentimento era de que aquele momento luminoso e poético soa como um alerta.
Dentro de minha cabeça houve um torvelinho de milhões de pensamentos misturados
aos tons pretos, cinzas de tristeza e perplexidade expostos nesse quadro
impressionista.
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