Pular para o conteúdo principal

Manifesto das Visitantes













A primeira chegou aos berros e chamou atenção dos transeuntes que passavam ao lado. Levanta o braço direito, de punho fechado, reivindica por mais espaço com árvores.
Reunidas no quartel general numa casa da Rua Régis Bittencourt, esquina com a Luiza Vernile Cilla, antiga Barão de Serra Negra, dezenas de manifestantes participam todos os dias, no primeiro horário, às 7 da manhã e, no segundo, às 17 horas de um comício desautorizado, em princípio, pelos proprietários da residência. São dos mais variados tamanhos e maior diferença de idades. No momento, estão em cima do muro, no local da concentração, uma meia dúzia de gatos e gatinhas pingados, armados de unhas e dentes, acompanham na espreita.
A primeira a subir ao tablado, que era um engradado de cerveja emborcado, foi uma menina de óculos espessos, de cabelo longo amarrado em forma de rabo de cavalo.
         - Rogamos pelos nossos direitos, garantidos pela Constituição, aos homens do poder! – gritou ela.
         - Nosso protesto é contra o descaso ao problema que vivemos! – respondeu em coro a multidão raivosa.
        - Todo poder aos moradores sem teto! – prosseguiu veemente a estudante, de olheiras fundas de tanto estudar de madrugada, mesmo sem conseguir disfarçá-las pelos óculos de grau, cor verde champanhe. Seu semblante lembrava vagamente a Angelina Jolie, conhecida no meio universitário público, como a líder inconteste dos direitos humanos, do Greenpeace e sem teto.
Em seguida, pediu a palavra uma companheira de luta, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou muito rouca, chorando e quase sussurrando a coitada:
- Não quero mais passar vergonha migrando de uma casa a outra, sem procedência!
        - Claro, que caracteriza invasão de propriedade alheia. Nós também sentimo-nos marginalizados, envergonhados, por tamanha humilhação e falta de respeito aos cidadãos! – responderam em uníssono os manifestantes. Lá do meio do povo, alguém esbravejou como uma águia:
        - Nossos representantes nas câmaras municipais, governos estaduais e federais, precisam aprender que o povo brasileiro necessita de teto para garantir sua segurança e conforto!
- Bravo! Apoiado! – concordou a comunidade reunida.
- Cafofo em área verde! Queremos moradia digna no campo, mas, nem pensar em projeto de casas populares, igual ao João de Barro – puseram o bico na conversa – três ou sete, provavelmente da mesma ninhada.
- Somos do bem, de família e, portanto, temos direito a um lugar, seja apartamento ou casa, onde possamos viver a vida simples, sem que intrusos invadam a nossa privacidade!
- Muito bem! Falou! Podem crer! - entoou em coro o casal de franguinhos brancos que mora ao lado, num sobrado inacabado de dois andares, fora das normas do código de obras, e que faz pipi nos vizinhos da sacada. Enquanto as baforadas quentes sobem das calçadas, em noite de verão:
 - Vejam só a heresia e o atentado ao pudor! – protesta a Dona Anunciata, solteirona convicta e filha de Maria confessa, segurando o escapulário, roga a misericórdia divina com os olhos voltados para o céu.
Agora, sobe no tablado uma senhora caquética, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.
- Senhoras e senhores - disse ela - sejamos objetivos. Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada aos nossos políticos representantes, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:
- "Queremos autonomia para nosso sindicato e também regularizá-lo de acordo com batizando de Quero o Verde da Vida, a Minha Roça de Volta e, Tô Fora da Cidade-Gaiola.”
- Apoiado! - gritou a assembleia.
Segundo ponto: ... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro que os distintos companheiros, em vez de piarem, guincharem, chilrearem, trinarem, assoviarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam piar, mais docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião pública contra a nossa causa...
Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão da oradora fora aceita. Ela então prosseguiu:
- Ainda no segundo ponto: - "Queremos fazer nosso cooper avícola apenas nas praças da cidade".
Rabinhos balançaram para lá e para cá: aprovado.
- Terceiro ponto: "É preferível que não nos deixem entrar pelo telhado, onde compulsivamente roemos a fiação causando uma porção de estragos e, os donos correm o risco de incêndio!"
Rabinhos alegres: de acordo.
Nessa altura, todos ali estavam com vontade de almoçar. Sendo assim, a garota branca, semblante de estudante “nerd” pelas olheiras e óculos de grau, decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.
Mas nesse instante pulou no caixote uma autêntica maritaca sindicalista, representando o proletariado insatisfeito e indignado, magrinha, de olhos famintos, as costelas aparecendo sob as penas ralas, o rabo entre as pernas.
- Irmãos! - bradou ela, ou melhor, essa palavra num gemido: - Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os seres da fauna são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está na devolução de terras, de áreas verdes, nem na construção de casas e apartamentos. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos, direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talcos contra pulgas, carrapatos, coceiras e sarnas. Viva, pois a revolução! Todo o poder as maritacas discriminadas, sem distinção de raça, cor ou credo!
-Uh! Fora! - gritaram os cães dos vizinhos, que pertencem todos, naturalmente, a ala da Situação, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano da justiça social: - Fora! Sarnentas! Penosas! Comedoras de restos e fios velhos! Ralé!
A cachorrada de raça avançou na direção das maritacas anarquistas, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem as manifestantes do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a cachorrada com balas de borracha, spray de pimenta e bomba de gás lacrimogênio.
Em seguida, o Batalhão de Gatos, com boné de bico e pés redondos, levou a comunidade das maritacas para o lugar adequado a essa espécie agitador: a gaiola. Elas agora estão sendo processadas e é capaz de passarem uns meses numa PENITÊNCIA-AVIÁRIA. - sentencia latindo alto um pastor alemão, do outro lado do muro.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na