Pular para o conteúdo principal

Retrato de Exilados em Terra Própria




A face dos perdedores na história










Escritor com sólidas raízes nos gêneros neo-realista e naturalista, Zelmo Denari transpõe para seus livros as veredas do regionalismo junto à rica vivência adquirida nas andanças pelo País. O fato narrado pode ser verídico ou fictício, mas sempre o envolve uma aura de realidade. Na sua ficção, monta em geral os personagens e ações sobre um momento histórico, que pode cruzar fronteiras e recriar o ciclo do mate no Mato Grosso, em Pelos Caminhos do Mate. Como seus próprios personagens, Denari é um escritor sem rodeios, simples. Sua linguagem flui em tom espontâneo, que libera a atenção do leitor para a compreensão do conteúdo, recolhido em recordações da infância e juventude ou brotado da imaginação (como mostra o seu livro “Recordações da Minha Aldeia”). Mas é, também, uma linguagem lírica, construída talentosamente sobre a fala popular.
Em Zelmo Denari, todo um contexto político-social e econômico do século XX vem à tona. É um escritor que, a par de romancista, não se furta ao compromisso de expor sensações e dramas da fase que vive, com a visão crítica de arguto repórter fotográfico, como observador das histórias das regiões oeste de São Paulo e centro-oeste do Mato Grosso. Da ficção desse escritor, em seu conjunto, transparece um projeto que se poderia chamar de alencariano, de Visconde de Taunay, de Bernardo Guimarães, Monteiro Lobato e Euclides da Cunha, na medida em que seus romances tentam sondar o avesso da História brasileira, aproveitando para tanto, junto com os modelos narrativos europeus (influência sobretudo do romance francês e do inglês) e brasileiros (o próprio Alencar e Machado de Assis, entre outros), a paisagem do país tropical, podemos citar no caso, a de Paraty, no Rio de Janeiro e Guaíra, do Mato Grosso. Em seus livros mostra-se o deslumbramento pela exuberância da nossa natureza. Vista em bloco, a obra ficcional de Zelmo Denari é uma espécie de reiterada “canção do exílio”, ainda que, às vezes, pelo avesso, como em Outono em Paraty, onde o personagem - na condição de involuntário da Pátria - é um exilado em terra própria.

Material para Ficção

A ficção como tentativa de “revelação e conhecimento do País” constitui o projeto dos românticos e é, ainda, o projeto de Denari, que, como Gonçalves Dias, Graça Aranha, Oswald e Mário de Andrade ou nos anos 80, Fernando Gabeira, no exílio e a partir dele, redescobre o Brasil. Conforme ele próprio declara em entrevistas na televisão e alguns jornais: as viagens, o teatro e o romance servem, daí para frente, a um verdadeiro mapeamento do País: partindo de Paraty, no Rio de Janeiro, de Olinda, do Recife, do Mato Grosso, pegando um trem na Estrada de Ferro Sorocabana, chegando na Vila Goulart (antigo nome de Presidente Prudente) na região oeste, de São Paulo. E com algumas escapadas na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, o romancista vai recompondo diferentes Brasis, pelo cheiro e pela cor, por sons característicos, pela fauna e pela flora.
Zelmo Denari atualiza esse projeto como jornalista e fotógrafo que aproveita os dados colhidos durante suas viagens, transformando-os em matéria de ficção. Em geral, isso ocorre cedo, pois seus romances parecem mover-se pelo sentido da urgência, debruçando-se sobre a realidade político, social e econômica (de 1917, início do século anterior e também passando pelo conturbado ano da revolução de 64, complementando com prisões, protestos, tortura, perseguições, cassações, assassinatos, dops,  dói-codi, e censura nos meios de comunicação) esquecida, na tentativa de iluminar e desvendar, pelo esforço da imaginação, aquilo que os jornais e a História deixaram na sombra.

Temas Locais e Nacionais

O localismo ostensivo amarra esse escritor ainda às origens do romance brasileiro, de uma literatura e de um País em busca da própria identidade (e até mesmo a um certo regionalismo, no caso do cenário do romance Pelos Caminhos do Mate). Denari expõe em painéis de madeira com profundos entalhes desde a pureza, a ingenuidade até a corrupção, da incredulidade e da fé política e controladora. Aliás, do mergulho no local e no histórico é que resulta a concretização desses temas locais e nacionais: pelo confronto das classes sociais no oeste de São Paulo até o centro-oeste de Mato Grosso, chega-se à temática mais geral da exploração do homem pelo homem e das centelhas de revolta e acomodação, que periodicamente acendem fogueiras entre os dominados, pela sondagem dos exploradores brasileiros, órfãos dos senhores de escravos, que aproveitam de uma mão-de-obra barata e desqualificada, chega a montar um grande painel da grotesca violência e maldade, que nos faz vislumbrar os abismos de todos nós.

À Margem da Nação

O que fica de bastante significativo para a nossa reflexão são os retratos em branco e preto, que vão minando a imagem do Brasil gigante, de florestas exuberantes, flores perfumadas e belas morenas, como a Iracema, para deixar aparecer o que ela mascarava: a situação da maior parte dos brasileiros, vivendo à margem da História, na pobreza e na ignorância. E, curiosamente, essa presença aparece pela ausência mesma do povo que vai sumindo da cena, como a marcar a distância secular que o separa das elites. Se em Outono em Paraty ele ainda tinha um lugar no centro dos acontecimentos narrados, é da margem que ele tudo observa, no último romance, tentando recontar a história dos plantadores de erva-mate.
Pressionados pelos donos de terras a fazer de qualquer modo o plantio, e por disporem de instrumentos de trabalho precários. Um dos recursos utilizados pelo autor: situações chocantes, quase inverossímeis, para levar o leitor à consciência de uma realidade. Qual realidade? A do alheiamento, da submissão, da impotência de seres humanos ante situações que os massacram e tornam instrumentos nas mãos dos poderosos. Essa realidade é reconstruída em tristes personagens, sem projetos e perspectiva de vida melhor dos campos de mate do Mato Grosso – tristes, mas belos na pureza, na simplicidade que conquistam o leitor e o fazem pensar em soluções.
Mais que simples história, o livro Pelos Caminhos do Mate, de Zelmo Denari é capaz de evidenciar a constituição psicológica dos personagens e o contexto histórico-social em que vivem. Transcende, com isso, o regionalismo e ganha caráter universal, no eterno embate do homem com a opressão física e moral. Ele coloca em suas narrativas um grande significado sociológico, que mostra a crítica situação dos proletários rurais, sob o mando opressor dos proprietários de terras, numa região sem leis, direitos e esquecida do mundo. Sempre em sobressalto pela presença de párias, num mundo onde impera a lei do mais forte, um universo duro, cruel e seco, violento como um soco direto no estômago, onde compõe essa grande tragédia tupiniquim, tipos um mundo medíocre repleto de ladrões, aventureiros, que gastam todo o dinheiro que ganham com cachaça, prostitutas, sob o olhar focado das matronas de bordéis, nas zonas de meretrício.
Pelo viés da ficção, portanto, o escritor Zelmo Denari retoma o problema da Nação, conforme estes versos de Carlos Drummond de Andrade: “O Brasil não existe. E acaso existirão os brasileiros?” Como o poeta mineiro, Denari em seus romances indaga sobre a existência do País, em vez de partir dela como um dado. E, ainda como o poeta que reescreve a canção de exílio de Gonçalves Dias, o romancista e, podemos dizer também o fotógrafo, igualmente a atualiza revelando o exílio mais terrível e mais difícil de superar: o exílio do lado de cá, o lá encarnado aqui, para onde não se volta de avião ou de barco.
A força desse romancista, filho do interior paulista e impregnado do sertanejo influenciado pela cultura paraguaia, é refletir no seu mural um problema social tipicamente nosso, a agonia de uma casta, o fim do patriarcado rural, o desmoronamento de um mundo. Assim como Honoré de Balzac estudara, nos seus romances, a formação da grande burguesia na França, no início do século XIX e Marcel Proust a decadência da nobreza e dessa grande burguesia no fim do século – o nosso romancista de Presidente Prudente, filho desse patriarcado rústico, vem refletir nos painéis do seu grande mural, a morte dos coronéis, a devastação dos campos de ervas pelos criadores de gado, o domínio crescente das usinas, em suma, a desumanização da economia, pela mecanização da lavoura. E, com isso, a ruína do patriarcado e a dispersão de um povo descendente de trabalhadores rurais de outrora, e ainda sem educação básica, sem profissão e mal preparado para o trabalho livre.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na