Pular para o conteúdo principal

Lilith







Lilith (1892) de John Collier













Há alguns anos o meu pai possuía muitos bens. Agora, para dizer seu paradeiro é algo incerto. Entregou-se à bebida por ter perdido num motor desenfreado na esquina da vida, um náufrago da pinga. Comecei a trabalhar cedo como auxiliar de escritório. Parte do salário sustentava a casa e comprava roupas à prestação. O tempo como o trabalho das nuvens, subindo de cargo. O meu pai atinava na lógica dos ratos na escuridão:
- Como pode uma menina dessa idade ter um bom salário. Sua sem vergonha, Messalina! Anda saindo com seu chefe, vamos confesse!
Já no sacramentado bar, comprar cachaça com o dinheiro do bolso da filha na matinal.
Lilith prendeu na tarrafa um namorado de família tradicional, alto, de vinte e um anos, proprietário do único carro importado da cidade.
Nos seus catorze anos chegou depois das três da manhã, pelas pontas dos pés, guarda-pó amarrotado rumo à porta do quarto. Seu Antonio foi tirar satisfação, notou a falta do broto da vagem. Arremessou a palma da mão na face:
- O Salomão aproveitou de você, filha. – aos gritos Seu Antonio: - Então, casa com essa mina de ouro. – baixou a cabeça esfregando os olhos.
- Pai, por que chora?
- Homem não chora, filha. Tem um picumã infernizando.
Camuflada a desgraça com o emprego de secretária numa rede de motéis, o de vigia ao pai, mesmo assim, pela honra surrou com cabo de velocímetro a filha.


II



Aos dezessete anos, a convite de Miriam, uma colega, veio conviver num apartamento no centro da cidade. Era guia de montaria de desconhecidos para aluguel, comida e um passeio turístico pelas principais danceterias e barzinhos da moda. O eixo do desfile.
Lilith fecha os olhos na frente da vitrine: uma boa conta bancária, uma mansão própria com garagem para quatro carros, sauna, uma longa escada em forma de “S” entre colunas romanas num condomínio fechado. Ela desfila repleta de joias, colares... – Posso ajudá-la em alguma coisa? – perguntou o vendedor. Movimenta a cabeça em dois pontos cardeais, despertando em convulsão: - Upa. Via o material da loja, mas, nada interessou-me. – rebateu medindo-o corpo inteiro. Caminha altiva na rua sob o sol maior, apressada, fugindo do vento petulante, desmanchador de seus cabelos. Depois que fui partilhar as quatro paredes da Miriam, o dinheiro é uma areia. Miriam é uma gazela.



( Reflexões Subjetivas )



Manobras táticas num Escritório de Um Executivo de Lilith Temple.
1 – Ir de meia em meia hora no toilette (arma infalível).
2 – Lixar as unhas, passar esmalte e folhear revista.
3 – Arrumar uma flanela, lustra-móveis e tirar a poeira das mesas.
4 – Pedir a uma amiga para que telefone de manhã à tarde.



( Diálogo Ordinário )



A idiota anotava de minha agenda os nomes, endereços e telefones dos “coroas”. Fiz de cordeira medrosa do papai sorrindo quando vinha do trabalho, pondo em ordem os objetos do apartamento. O dia D não tardou, combinamos de ir a uma danceteria. Não esperava pela hora dos dois levantarem-se para dançar. Que benção, aconteceu. Alceu deixou na minha guarda a sua bolsa tiracolo, abri-a e arranquei a foto de Miriam introduzindo uma foto minha com um short bem apertado e enfiado no bumbum. É uma pena, fui seu ombro amigo durante semanas pela partida de Alceu...
As meninas da faculdade perguntam-me: - Danadinha! De pé-de-ouvido conta aí pra gente, quem é o pai de santo da macumba?
(risos): - Não acredito nessas coisas.
A mão direita nas costas, o polegar entre o indicador e o médio.
- Juro. Por essa boca que irá padecer debaixo da terra, acredito no Pai de Todos e sou cristã. Falam isso por eu ter conseguido um baú. No pescoço, pendurada numa corrente uma figa.
Sentada na mureta, espera pelo príncipe centauro motorizado, o rei das minas, luzindo abaixo dos colares de ruas e avenidas a Diana caçadora de cristais encantados de néon... Assim seja.





( Publicado no Caderno 2, do jornal O Imparcial,
de Presidente Prudente, São Paulo, Página 24,
em 3 de junho de 1984. )




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na