“E, com os olhos errando de um ponto a
outro,
ele se esforçava por furar as sombras,
atormentado pelo desejo e pelo medo de
ver.”
A tímida luz do poste lhe iluminava
agora a grande cabeça de cabelos brancos e ralos; o rosto achatado de uma
palidez cadavérica, cheio de manchas azuladas. Era baixo, pescoço enorme, a
barriga da perna e os calcanhares salientes, com braços compridos e mãos
quadradas que batiam nos joelhos. E, imóvel como o poste, sem dar mostras de
estar sofrendo com o vento, ele parecia de pedra, insensível à temperatura e ao
bafo quente que batia em seus ouvidos. Depois de tossir, a garganta escoriada
por um rascar profundo, escarrou para o lado do papelão e a calçada embranqueceu
como cal.
O velho janota na falsa comunidade
com a juventude. Seu cérebro velho não conseguira suportar a cachaça como os
jovens robustos, miseravelmente bêbado. De olhar idiota, um cigarro entre os
dedos trêmulos, mantendo com dificuldade o equilíbrio, vacila no mesmo lugar,
impelido pela bebedeira para a frente e para trás. Como teria caído no primeiro
passo que desse, não se atrevia a sair do lugar, mostrando, no entanto, uma
alegria lastimável, segurava pelo botão da camisa, cada um que se aproximasse
dele, balbuciava, piscava, ria, erguia seu dedo indicador com anel, em
brincadeira tola, e lambia os cantos da boca de maneira abominavelmente
ambígua.
Um homem mais novo observou-o de
cenho cerrado e novamente foi possuído de um sentimento de perturbação, como se
o mundo mostrasse uma leve, porém, não detível, inclinação para desfigurar-se
em estranho e grotesco. Um sentimento, todavia, que as circunstâncias o
impediram de analisar, porque neste momento a atividade pateante das viaturas
policiais trouxe a sensação de um dique obstruir a correnteza de sua viagem
interrompida tão próxima do seu destino, passando pelo Canal de Suez...
Uma adolescente magra o olhou para,
em seguida, examinar a nódoa no chão.
- Há muito tempo que você fuma com a
latinha?
O homem abriu muito os braços.
- Ah! sim... Há muito tempo. Não
tinha ainda nove anos quando curti a maresia do primeiro papelote.
Enquanto falava, fagulhas
incandescentes de cigarros que, a espaços caíam no espaço, punham reflexos
sangrentos em seu rosto lívido.
Seu olhar ateu, não enxergava nem
mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado pelos prédios e
através do sopro seco do vento de agosto, rajadas largas como sobre um mar,
geladas por terem varrido léguas de represas, pântanos, riachos, minas e terras
nuas. Nem sombra de árvore pintava o céu; as ruas e avenidas se desenrolavam
retas como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.
Pelas três da madrugada, um homem
anda tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta, segura firme próximo ao rim
um pequeno embrulho feito com sacola de compras, incomodava-o bastante; ora
mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar a
sua ansiedade no fundo dos bolsos. As mãos derretidas pelo açoite do vento quente
fazia sangrar.
Entra por uma passagem estreita que
se afundava labirinto adentro. Tudo era escuridão. Percorrera, a esmo, uma
distância aproximada de duzentos passos quando, bruscamente, numa volta do
caminho, pontos luminosos reapareceram próximos dele sem que o homem chegasse a
compreender como podiam elevar-se tão alto no céu morto, iguais a luas
fumacentas. Mas, ao nível do solo, outra cena o fazia parar. Era uma massa
pesada, um amontoado de construções de onde se levantavam as silhuetas das chaminés
das fábricas. Raros clarões saíam das janelas sujas, do lado de fora, as velhas
vigas de madeira enegrecidas do edifício, alinhando vagamente perfis de formas
retangulares gigantescas. E, dessa aparição fantástica, engolfada na noite e na
fumaça, um único ruído se elevava: o aspirar grosso, uníssono e prolongado de
um vapor que não se via.
Só então o homem se deu conta de que
aquilo era a Cracolândia sobre os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana. Em
vez de se dirigir para a linha férrea, decidiu contornar o terreno. Aquelas
sombras atearam fogo nos montes de lixo para alumiar e aquecer. Outros reviram
com os dedos desesperados os entulhos. O vento redobrava de intensidade, um
sopro glacial feito de grandes golfadas regulares para enrijecer, como golpes
de foice.
Suas vozes se perdiam, rajadas de
vento transformam as palavras num lamento melancólico.
- Então, havia de morrer de fissura?
- Que coisa assassina...
Dentro em pouco a linha estaria
cheia de viciados, bêbados e mendigos.
- Sim, retruca o homem velho, tudo
isso ia terminar mal, Deus não tinha o direito de fechar o expediente e jogar
tantos cristãos na desgraça.
As trevas continuam profundas por
toda parte, na amplidão sem rumo. Não era um grito de fome que rolava com o
vento de agosto, através destes poliedros revestidos de fuligem? As rajadas do
vento haviam aumentado e pareciam trazer consigo a monotonia da loucura, que
mataria muitos homens. E, com os olhos errando de um ponto a outro, ele se
esforçava por furar as sombras, atormentado pelo desejo e pelo medo de ver.
Com o dedo indicador designou no
escuro um ponto vago, um lugar ignorado e remoto, povoado por essas pessoas
para quem aqueles seres aspiravam nos canos, nos tubos, nos veios, havia mais
de meio século.
Sua voz elevava-se como uma espécie
de medo religioso, era como se estivesse falando a respeito de um restaurante
inacessível, onde se escondia o deus farto, festeiro e acocorado, a quem todos
eles davam a sua própria carne e que nunca tinham visto.
Aquelas
criaturas seguem Caio Pego com passos arrastados, de inválidos. Sempre distante
da linha do trem, não se mexiam, todos curvados, com os queixos fincados nos
joelhos, os grandes olhos mortiços fixados no vácuo. As cusparadas voam,
enquanto os seres, cheios de sono, urinam sem vergonha, com a sem-cerimônia
tranquila de uma ninhada de cachorros sem dono, criada junta.
Nenhuma
alvorada clareava o céu morto, apenas as pequenas brasas e as fogueiras de
entulhos ensanguentavam as trevas, sem iluminar o seu mistério. E a cratera,
compostura de bicho maligno, respira agora mais grossa e amplamente como que
sofrendo com sua dolorosa defumação de carne humana.
Sobre as ruas um calor repugnante, o
ar estava tão pesado que os cheiros que emanavam das moradias, lojas e
restaurantes, fumaça de óleo, ondas de perfume e muitos outros, pairavam como
nevoeiro, sem dispersar. As fumaças dos cigarros permaneciam no mesmo lugar e
só sumiam aos poucos. O empurrar das pessoas no aperto incomodava o passeante
em vez de distrai-lo. Quanto mais tempo caminhava mais se apoderava dele o
detestável estado que o ar do deserto, como o gás carbônico, pode produzir e
que é, ao mesmo tempo, excitação e abatimento. Um suor desagradável rompeu-lhe.
Os olhos recusam seus serviços, o peito está oprimido, ele parece febril, o
sangue pulsava na cabeça. Fugiu, sobre trilhos, das aglomeradas ruas para os
arredores dos pobres. Ali as nauseantes exalações dos bueiros lhe tiram o
desejo de respirar.
Sua cabeça
ardia, seu corpo estava coberto de um suor pegajoso, sua nuca tremia, uma sede
insuportável o atormentava; procurou por qualquer e imediato refresco. Na
entrada do estacionamento da rodoviária, comprou uma lata de refrigerante na
lanchonete. Tomou lentamente enquanto andava. Uma antiga praça frequentada por
andarilhos, ciganos, prostitutas, mendigos, vagabundos e viciados abriu-se à
sua frente; reconheceu-a, fora aqui que, há semanas, fizera seu desesperado
plano de fuga. Sobre os degraus de uma pequena escada, ao adentrar a praça,
deixou-se cair e encostou a cabeça no redondo da pedra. Ali estava sossegado;
nascia capim entre as pedras dos bancos de concreto. Latas, bitucas e maços de
cigarros amassados estão espalhados ao redor. Entre as casas velhas circundando
a praça, desiguais em sua altura, uma tinha aspecto de palácio com janelas de
arco ogival, atrás das quais residia o vazio, e com pequenas varandas
enfeitadas de vasos e pilares.
No antigo prédio de um hotel. Os
quartos estão imersos nas trevas, como se estas quisessem esmagar com seu peso,
o sono de seus hóspedes que se pressentiam lá, amontoados, boca aberta, boca
aberta, mortos-vivos. Apesar do vento frio mordente do exterior, que corta como
farpas de bambu, paira um ar pesado desses quartos. Tem um calor vivo, esse
calor rançoso dos dormitórios que, cheiram a uma vara de porcos. Um tom
enfumaçado manchava duramente as paredes velhas pintadas de azul claro. Mas
ninguém se move. As respirações fracas continuam a soprar, acompanhadas de
roncos e grunhidos sonoros.
Lufadas de vento morno trazem de vez
em quando o cheiro de éter, cal em composição com o odor acre característico.
No
entanto, ficou por um instante sufocado com nova crise, de tal violência que
não lhe permitia respirar. Por fim, tendo escarrado e limpado a espuma branca
dos lábios, em meio à ventania cada vez mais violenta.
Houve um silêncio. Longinquo, o som
metálico de um celular bate regularmente no centro da cabeça, e o velho de
cabelos de gelo era como uma queixa, como um grito de fome e de cansaço vindo das
profundezas da noite. Diante da fogueirinha de papel, de suas chamas
enfurecidas o velho continuou, mais baixo, a remoer suas lembranças.
- Quando ainda se pode comer...
fumar... murmura novamente Caio Pego.
- É isso que eu digo: Enquanto o
papelote para fumar, algo para comer, vai se vivendo.
O velho calou-se, os olhos voltados
para a Rodoviária, onde as luzes do sol nascem riscando o solo do pátio de
chegada dos ônibus. O velho levanta os ombros para, em seguida, deixá-os cair,
como que esmagado sob um monte de moedas de chumbo.
O sol de verão fulgura um rico
brilho ardente e pulsante dominando as poucas nuvens esparsas sobre a cidade
agitada e imprevisível.
Secas e ventosas estão as ruas e
avenidas, de casas, sobrados e prédios com esguias cumeeiras, e da paisagem que
treme aos olhos, correndo de um lado a outro, nem medo nem febre.
E das paradas de ônibus, um corre-corre
rápido desfilando vultos multicoloridos sob o resfolegar do vento impiedoso: a
saída do povo para o trabalho. Caminhavam balançando os ombros, sem saber o que
fazer com os braços, que cruzavam no peito. Vestindo jaquetas de manga, do
mesmo tecido das calças rancheiras, tremiam de frio, mas nem por isso andavam
mais depressa, dispersos ao longo dos pontos e da plataforma de embarque, num
tropear de rebanho.
Os carros, caminhões, bicicletas e
motos corriam num ruído ensurdecedor de buzinas, som em volume alto, ambulantes
com megafones, parecia ferragem sacudida exalando dos escapamentos o vapor de
fuligem gordurosa. A claridade da exposição dava àquele espaço um aspecto de
pátio, de loucos próximos de uma torrente.
Tudo desaparecia neste estado das
coisas angustiantes tão egoisticamente disputado, nem mesmo sentiam o odor
fermentado dos sapatos úmidos que paira e incha as pernas. As cãibras
resultantes das posições repetitivas. As trevas sufocantes das latinhas, caixas
de fósforos e cachimbos
onde eles descoravam como plantas encerradas em destilarias e adegas. E, à
medida que o dia avançava, o ar ficava cada vez mais envenenado com o
aquecimento fumacento dos cigarros, com a pestilência dos hálitos de água
ardente misturada ao asfixiante crack que pousa nos olhos como teias de aranha
e que somente o vento seco e cortante da noite varreria. Mas eles, como
topeiras no fundo de seus buracos negros, suportando o peso angustioso da droga
na pedra, sem ar nos peitos escaldantes, continuavam a cavar o poço do
calabouço. Só a coriza ou o sangue escorrendo do nariz, anuncia que ainda estão
vivos.
Enquanto reflito ecoa os gritos,
gemidos, sussurros, risadas zombeteiras e escrachadas sob o cobertor das nuvens
cinzas até aqui e eu fecho os olhos. Olho para um mundo inato, quimérico,
vazio, cruel e frio, que quer ser ordenado e fútil, olho para um formigar de
sombras nos dentes cariados, com aspecto humano, que acenam para mim, a fim de
que as esconjure e liberte: uma roda de sombras trágicas e cômicas e algumas as
duas coisas ao mesmo tempo – e a estas sou muito dedicado.
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