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Beleza na Matéria que Morre














Dá-se em Negros Galhos que Abrem sob a Chuva, do livro Cobra de Vidro, o efeito cinematográfico obtido nos detalhes da cena como uma viagem ao subconsciente, pela procissão do espírito, emaranhado na rotação do insólito, do maravilhoso ou das propriedades mágicas de investigação dos galhos como símbolo. No entanto, a sensibilidade para a poesia das coisas efêmeras e, de ver a beleza nas matérias podres, parece ter-se aguçado no trato profundo com o próprio meio moderno que escolhi para se exprimir, como se o jornal e a Internet tivessem afinado o senso do instantâneo e do perecível. Num mundo como o nosso, já bastante estandardizado, de relações alienadas, onde tudo pode virar mercadoria e em si nada valer, coloco a minha poesia, em meio ao mais dissolúvel, não apenas nos dá a impressão súbita do momento de beleza fugitiva, mas a dignidade e a poesia do perecível, quando tocado por um dedo humano.
O poema assemelha-se a um transe, tamanha a força de espiritualidade e mistério envolvendo a lógica do real. Ele, aqui, explora, do(a) leitor(a), a vocação do abismo.
Em Cobra de Vidro prova-se que a poesia moderna recolhe o espólio das religiões, do simbolista francês Charles Baudelaire e do brasileiro Pedro Kilkerry, o romântico, apocalíptico simbólico e soturno Arthur Rimbaud: melhor, dos místicos San Juan de La Cruz e Santa Teresa d´Ávila, na medida em que lembra dos “estados místicos” experimentados na solidão, além das consequências intelectuais da percepção argumentadas por Antonin Artaud. Tendência natural da cobra de vidro encontrada no norte do Brasil, compõe um mosaico de imagens e influências literárias que habita o transcendental desde os idos de 1980.



Negros Galhos que Abrem
sob a Chuva



Depois de todos os encantos idos,
lhes chega a tormenta,
em voo silencioso
Coruja triste que só faz o pouso
no oco dos velhos
troncos carcomidos
Oh! O silêncio de sala de estar, espera
Onde esses pobres, guardachuvas
lentamente escorrem...


Não traz venturas, certamente
Mas dá grande desconforto...
E em verdade pergunto:
Onde está o calor das coisas
na rua, ao desabrigo
Tu verás que tudo é sombra vã,
Tênue fumo que a morte assopra
num momento da agitação
da vida


Uma canção que não tem sentido
como não tem sido a brisa
nem a vida...


Perdido do cinema mudo,
imagem doméstica
do gato, que mora no mundo
para sempre
por entre antigos retratos de parede
Os teus olhos conseguem ficar
longo tempo abstratos
às vezes, você fixa os objetos,
obstinados
porque eles se desumanizam de todo


Vestes de trevas e vidrilhos
Cabeleira trágica
Olheiras suspeitas
O grito horizontal da boca
surgiu da noite
sumiu pela última portas as suas
lentes abismais


Por que deixa ao pecado
esse caminho lascivo,
essa fatal doçura?
E faz do bem um fruto amargo
e indesejado?
na inquietação feliz do purgatório,
No eclipse do mundo,
negras mãos que se abrem sob a chuva.





*Este poema pertence ao livro Cobra de Vidro, de 90 páginas, edição independente de 2012. Para adquiri-lo disque (***18) 9702 6648, envie um e-mail para o endereço eletrônico shirassu@gmail.com
ou acesse a home page de Rubens Shirassu Jr., no Facebook, deixando uma mensagem.





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