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Na seara da repressão (6)

 

(Sexta Parte)

Como vem sendo ressaltado no texto, a “revolução sexual” evidenciou práticas dissonantes dos valores mais conservadores apregoados por setores da sociedade e pelos “dirigentes” do país. Comportamentos sociais relativos aos modos de sentir, agir e amar suscitaram divergências influenciando, também, na organização - ou institucionalização – da censura. Política e (I)moralidade recebiam enfoque, um tanto que distorcido e os censores passaram a avaliar as produções artísticas à guisa de detectar as mensagens subliminares de elementos subversivos para combatê-las 4.

Com uma forte tradição católica, uma parte da população – representada por associações comunitárias, membros de Igrejas, confederações de famílias cristãs, etc. – pressionavam o governo em defesa da moral e dos bons costumes. Em uma carta da Confederação das Famílias Cristãs, em 26 de janeiro de 1973, enviada ao Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, denunciando a exibição de filmes com conteúdo pornográfico nos cinemas da cidade. Para a diretoria desta confederação, a exibição de um desses filmes estaria prejudicando à juventude, “mostrando de forma sensacionalista a devassidão que imperava numa universidade”. O diretor segue com sua solicitação em virtude do funcionamento de um cinema no mesmo prédio que o de um curso preparatório para vestibular.

Não seria possível à Secretaria de Segurança, através de seus órgãos competentes, fixar limites às exibições feceninas [sic] circunscrevendo-as a determinado círculo do centro da cidade e impedindo que elas invadam os bairros residenciais? No caso de filmes com o referido, especial nocividade, para os estudantes, não haveria forma de evitar fossem eles projetados juntamente em um lugar frequentado por jovens?

Confiando na boa vontade de Vossa Excelência, esperamos que a matéria seja devidamente estudada, com a adoção de medidas que diminuam que os espetáculos pornográficos vêm causando à nossa mocidade.

Sendo o que se nos oferece, reiteramos a Vossa Excelência o protesto da mais alta estima e distinta consideração 142.

141 A partir de janeiro de 1970, no governo de Emílio Garrastazu Médici, através do Decreto-lei 1.077 a censura prévia, que possuía suas fragilidades, tornaram-se o meio mais eficaz no “plano de combate” à desordem política e moral. Mesmo com a difusão dos novos comportamentos e valores morais nos meios de comunicação, para o governo a censura prévia era um recurso (MARCELINO; 2006) que demonstrava o rigor do governo em relação ao tratamento das questões.

Como percebe-se havia, uma certa demanda com o rigor da censura, tanto por parte dos censores e dos setores dirigentes, como da sociedade civil. Esta acreditava ser função do Estado fornecer subsídios aos movimentos em defesa à família, uma vez que esta seria (MARCELINO; 2006) o fio de que se tece a sociedade.

Em pareceres e cartas nota-se um forte discurso de moralidade dos costumes em socorro às famílias contra a “devassidão”, a “nocividade” e a pornografia dos meios de comunicação que trazem personagens nocivos à juventude. Os grupos conservadores viam-se solidificar, no campo da moral e dos bons costumes, a subversão dos comportamentos sexuais tidos como “desviantes”. Havia o choque entre as gerações e os “novos” comportamentos dos jovens eram socialmente condenáveis.

As transformações sociais estavam atreladas à relação identificação dos papéis de gêneros, consequentemente, a “moral sexual” ou a compreensão acerca da sexualidade. Vê-se a emergência de diferentes tipos de gênero reivindicando o seu espaço em meio a sociedade patriarcal das décadas de 1960-1970.

Em uma outra carta, dessa vez remetida ao presidente Emílio Garrastazu Médici, em 3 de junho de 1972, o Bispo-prelado de Tefé Dom Joaquim de Lange também demonstra o seu receio com a “libertinagem” nos meios de comunicação em filmes e revistas.

142 Consulta na Administração Geral. Manifestação da Sociedade Civil. BR_AN_BSB_NS_AGR_COF_MSC_036_p0004.

Para os militares e a parcela conservadora que apoiava o golpe, moral, política e religião deviam caminhar juntas. A partir das ponderações sobre os documentos do serviço de censura, registra-se a preocupação em conferir grande importância a utilização estratégica dos meios de comunicação como propaganda política e crítica à conjuntura econômica e política. Assim, na seara da repressão, alguns setores pressionavam por mais rigor nos vetos, com respaldo político e legal, sob a alegação que o livre exercício de expressão, por meios subliminares, causava danos às tradicionais instituições, pondo em risco, assim, o regime ditatorial. Tais alegações aparecem no parecer nº 1.755/75, de 30 de outubro de 1975, onde a técnica de censura Ascension Palácios Chanques decide pela proibição do livro “Uma mulher diferente”, de Cassandra Rios, por possuir um “conteúdo” altamente atentatório a moral e aos bons “costumes”, mas que também fere o Código Penal brasileiro e o Decreto-lei 1.077/70.

Em combate à oposição e à “libertinagem”, os militares tomaram algumas iniciativas no sentido de “reforçar” a política econômica, como a redução da inflação, mas também, a repressão torna-se mais rígida. Para proteger a sociedade da grande onda comunista, a censura política era tão eficaz quanto a censura dos costumes que fragmentava a família cristã. O serviço censório, aplicando a censura política e a censura moral, desaceleraria as mudanças comportamentais.

Um “apelo” a moralidade já é percebido desde a década de 1940, pois há um grande incentivo à transformações no sentido de modernizar o Brasil. Novos costumes, sociabilidades, padrões de consumo e de entretenimento vão mudando ao longo de toda década. Na década de 1950, as grandes cidades encontravam-se em acelerado processo de crescimento urbano, as famílias começavam a ter um outro perfil 146. De acordo com Del Priore (2011; p.171):

 

146 Segundo Del Priore (2011; p.160): “Na família, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida por modelos femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características próprias da “feminilidade”, como instinto materno, pureza, resignação e doçura. Na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento tradicional.

Toda a transformação econômica – que ia de uma maior ocupação das cidades grandes, do processo de industrialização e ganhos da população com as leis trabalhistas -, já vivenciada desde a década de 1940, efervesceram o cenário político e cultural nos anos 1960. Antonio Hohlfeldt (1993; p.43) nos indica algumas dessas transformações:

Temos assim, iniciativas norte-americanas no desenvolvimento de tecnologias de ponta, ao mesmo tempo em que outras inéditas no Brasil, são aqui implantadas, ainda no decorrer da administração João Goulart. Quando se dá a ruptura institucional, os novos governantes encontram disponibilizadas as tecnologias de que necessitam para concretizar o controle ideológico sob a capa do discurso da integração nacional: o sistema de torres de retransmissão, a discagem direta à distância e os satélites de comunicação permitem que aqueles concessionários de rádio e televisão, considerados confiáveis pelo sistema, possam ampliar a sua presença, viabilizados, simultaneamente, pelo desenvolvimento da infra-estrutura tecnológica, a cargo do governo, e pela expansão do mercado de consumo, ampliado pela incrementação da atividade publicitária, já organizado em redes regionais, e logo depois nacionais.

147 Hohlfeldt, informa que durante a década de 1960 há uma grande disputa pelo domínio televisivo, a exemplo da TV Bandeirantes com seus Titulares da Notícia em confronto com a TV Globo e seus grande número de telenovelas como Os Irmãos Coragem. O autor também nos fala da repercussão do vídeo tape, que em 1969, possibilitaria o Jornal Nacional da TV Globo, a 1º de setembro, ampliando-se sua qualificação com a chegada da cor, em 1972, o que completaria a revolução, solidificada desde 1967, com a implantação do primeiro satélite brasileiro de telecomunicações, no chamado padrão Globo de qualidade” (p.43).

No artigo “A fermentação cultural da década de 60” (1999) Hohlfeldt discute, dentre outras coisas, como os meios de comunicação começam a se expandir no país, o surgimento das telenovelas, da TVs Excelsior e Tupi, a transmissão de shows e festivais musicais, dos telejornais que transmitiam com maior rapidez as notícias 147. Ao longo do texto são evidenciados aspectos da produção artística e cultural no teatro, na música, na literatura, no cinema e nas artes plásticas. O autor busca enfatizar como estes suportes representam as contradições sociais e políticas do Brasil à época.

Englobando elementos provenientes de matrizes de pensamento diversas (catolicismo, liberalismo, nacionalismo etc.), o “imaginário anticomunista” refere-se a um fenômeno bastante complexo e de mais longa duração, não sendo este o nosso objeto de estudo. Por meio dele, foram criadas inúmeras representações sobre os comunistas: “diabólicos”, “depravados”, “vermes”, “libertinos”, “antipatriotas” etc.

 


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