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Sob olhar censurador (5)

 

(Quinta Parte)


Cassandra Rios discorre sobre sexualidade, literatura e as condições em que suas obras foram produzidas, na entrevista concedida ao jornalista Fernando Luna (TPM, 2000) sobre a questão da moralidade, do lugar da mulher na literatura e expondo a preferência do escritor Henry Miller em ser chamado de obsceno, o repórter questiona como a própria escritora gostaria de ser reconhecida e como ela classifica a sua arte. Rios é enfática ao responder:

 

Ah, prefiro obscena. É uma palavra bonita, sensual. “Pornográfica” já é outra coisa. Deve ser “porco-gráfica”! (Risos) Meus livros não são pornográficos. São livros de amor. Falam da atração que uma pessoa exerce sobre a outra. Há aquele processo de se interessar, de namorar. Não acredito que uma mulher olhe para um homem e “Tum”!, vão lá direto. A não ser que esteja afim do dinheiro dele ou ele do dinheiro dela ou que os dois sejam tarados. (Página 99)

Afirmo que a literatura não possui balizas para o reconhecimento da pornografia como gênero literário, e enfatizo a precisão do mesmo, me utilizando da argumentação de Henry Miller, em ensaio escrito por ocasião da proibição de seu “Trópico de Câncer”, em meados dos anos 30.

Não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha. Para Miller, essa “qualidade do espírito” estaria intimamente relacionada à “manifestação de forças profundas e insuspeitas, que encontram expressão, de um período a outro, na agitação e nas ideias perturbadoras”.

A tese de Henry Miller vem reforçar a impossibilidade de se fixar o estatuto literário da pornografia, na medida em que, para ele, nada existe que seja obsceno “em si”. A se crer no escritor, a obscenidade seria fundamentalmente um “efeito”. Daí, a dificuldade de delimitá-la neste ou naquele livro, nesta ou naquela convenção literária, o que seria confirmado não só pela diversidade de obras consideradas pornográficas em tal ou qual época, mas ainda pelas divergências individuais acerca do que seria efetivamente imoral. Ora, ao esvaziar a pornografia de seus conteúdos e separá-la de suas formas, o autor de Sexus abre espaço para interrogarmos a palavra obscena naquilo que a torna distinta de todas as outras palavras, isto é, na sua condição de fetiche.

Se a pornografia tem o intuito de excitar, de provocar o prazer pela exposição da atividade sexual pura. Evitarei o lugar-comum das análises que indicaram com precisão o gênero literário de Cassandra Rios como literatura pornográfica 135. Sua produção não se limita a este aspecto, nela o que se pretende é apresentar as relações afetivas, conflitos do sujeito, para assim mesclar suas narrativas com as experiências sexuais. Limitada à uma subliteratura, destacando fortemente os contornos das relações íntimas entre os casais, a literatura de Rios é erótica 136, principalmente a descrição dos atos sexuais.

 

135 Apesar de se apresentar como um conceito complexo, opto por conceber a pornografia com algo que estabelece uma apropriação licenciosa da sexualidade, com o intuito de provocar a excitação, onde é explicitada a atividade sexual (através da ênfase dada aos órgãos genitais), é comum à quase totalidade das cenas a ostentação de violência, humilhação e outras formas de dominação.

136 Opto por classificar a literatura de Cassandra Rios como erótica, arriscando a imprecisão desta apreciação, pois, com receio de empregar os termos erótico e pornográfico, alguns historiadores e pesquisadores de outras áreas tendem a não categorizar as produções culturais. A dificuldade de se estabelecer as diferenças entre o que seria “erótico” ou “pornográfico”, em linhas gerais, habita na interpretação feita das relações entre autor, receptor, objeto e mecanismo de censura. O que dará legitimidade a classificação enquanto pornografia é a instituição que determina o interdito. A diferença entre uma obra pornográfica e uma erótica pode ser feita por estudiosos na medida em que há a possibilidade de caracterizar o tipo de ligação existente entre a intenção do autor, a apropriação do receptor e o objeto. Desse modo, as análises e classificações do que é pornográfico tornam-se mais fáceis, a partir da concepção de que tais conceitos e/ou as leituras das obras consistem em um ato subjetivo. Uma sensualidade e erotismo aparece, de fato, em sua obra, porém, o que a escritora propõe é uma “erótica dos afetos”

137. Ou nas palavras da autora: “Meus livros não são picantes e nem obscenos, nem mais realistas que outros que circulam livres com lauréis de grande arte [...] cuja finalidade não é outra senão “sensacionalismo”, definindo sua produção como um “trabalho limpo, objetivo e honesto, moralista e bem feito, na sua forma simples e popular, nunca pornográfico” (CEN, 1977, p. 10).

        Se para os setores conservadores a sociedade brasileira, em especial os jovens, estava susceptível ao desregramento, os corpos e suas representações nos múltiplos espaços e suportes de comunicação – fossem eles descritos nas músicas, nas peças ou nos livros – deviam ser censurados. Em nome do poder instituído, notadamente do governo militar, os setores conservadores da sociedade pressionaram cada vez mais o Estado, pois a conduta moral intensificada durante o regime militar, tentou disciplinar e adestrar os corpos, sobretudo, no que diz respeito à livre expressão de suas sexualidades” e viu-se durante a década de 1970 que uma “tentativa de adestramento e disciplinarização do corpo social, intensifica-se tais relações de poder.

Os mais variados livros, expondo uma diversidade de enredos eram apreendidos aos montes. Estavam na ordem do dia as palavras conservadorismo e moralidade. O governo instituía claramente a censura como uma estratégia para impedir a circulação de produções culturais – sobretudo os livros -, o ministro da Justiça emitiu inúmeros despachos de proibição e, como já foi citado, isso se deveu ao impacto da difusão midiática e dos impressos sobre a pornografia. É interessante notar que as publicações tidas como pornográficas não se caracterizavam como um tipo de leitura “comum” a juventude intelectualizada politizada de esquerda. Até mesmo nos militantes contrários ao regime as transformações de costumes, em especial, as que dizem respeito à sexualidade, causam desconforto.

Obra erótica ou pornográfica se estabelece em consonância com a realidade psíquica e social do indivíduo, dialogando com características, significados e dimensões subjetivas relevantes.

 

137 Utilizo este termo por considerar que o erotismo mantém uma conexão com o psicológico. O desejo, seria, por assim dizer, aquilo que proporcionaria a imaginação ou idealização do sexo. Suscitando sentimentos e sensações através de insinuações, do deleite sexual e por vezes – dependendo da subjetividade do leitor/espectador -, o amoroso. Os efeitos imediatos da excitação sexual que provém da literatura pornográfica, não correspondem aos da literatura erótica. O que ela busca, antes e acima de tudo, é dar representação a uma das formas da experiência humana: a sensualidade dos afetos e dos corpos (FREITAS, 2008).

 

138 Demonstrando um certo conservadorismo no que se refere às questões comportamentais, os intelectuais de esquerda limitavam-se às discussões teóricas e às medidas efetivas para a revolução. As diferenças de gênero e sexuais não tinham espaço como questões relevantes ou temas que se acrescentariam às manifestações políticas.

Toda a perseguição sofrida pela autora mais lida e perseguida do país durante o regime militar, apenas atestam o quanto puderam ser provocativas e instigantes as narrativas que ela compôs. Pois, segundo Luciana Borges (2011, p.4), nelas encontramos “a voz da nova mulher sobre erotismo e a sexualidade feminina, o qual transforma a capacidade de exercitar o prazer como um dos mecanismos de auto-formação identitária da mulher”. Dessa forma, busco abranger a importância dos escritos de Cassandra Rios observando o viés de inscrição em uma “política” de circulação de subversiva, pois, apesar de a sociedade brasileira ter vivido experiências relevantes no que diz respeito aos comportamentos femininos, até o final da década de oitenta a população ainda enxergava com maus olhos aquelas mulheres que faziam uso de suas liberdades sexuais, as que optavam por viver relacionamentos amorosos livres das amarras do matrimônio, ainda insistindo na separação das mulheres que são para casar e as outras em que tal enlace nunca seria possível, assim, Rios também expõe, ao mesmo tempo, um novo horizonte aos “prazeres dissidentes”.

Até aqui procurei entender como através do Decreto-Lei 1.077/70 o governo agiu com mais rigor no controle das publicações eróticas. O conservadorismo toma conta da esfera decisória no que se refere à liberação de obras literárias. A pornografia e a degeneração dos costumes, no discurso dos censores e do Ministro da Justiça, são as causas maiores dos desajustes da sociedade e, por isso mesmo, é de competência dos órgãos ligados ao governo manter a ordem e a moralidade sociais. Enquanto o resto do mundo vivia e se configurava de acordo com as mudanças sociais e políticas, no Brasil estas eram percebidas como desordem.

Já foi discutido que a mídia teve um papel importante na difusão dos comportamentos a partir da década de 1960. Com o surgimento do feminismo, de movimentos civis em favor dos negros e homossexuais, o corpo e a sexualidade aparecem como o lugar da censura. A pornografia tornou-se um mote inoportuno para o regime militar. A sexualidade, representada em livros, peças teatrais e livros era uma possibilidade de contrapor-se ao regime militar, que não somente por meio da forma tradicional da militância política das esquerdas.

Mais adiante, no próximo tópico a ser abordado, trago alguns posicionamentos de grupos da sociedade civil e algumas entidades religiosas, a exemplo da Congregação das Marianas e Tradição, Família e Propriedade (TFP), grupos que irão defender o conservadorismo e a moralidade fazendo frente a exibição dos temas comportamentais e às publicações que versavam sobre o sexo. Apoiada nos discursos das missivas remetidas ao Ministério da Justiça exigindo mais rigor da censura, examino os embates travados em nome da ordem moral e dos bons costumes contra a mídia e a escritora Cassandra Rios que corrompiam os corpos e as mentes da juventude.

140 Mestre e Doutor em sociologia e também historiador Flávio Queiroz (2006), ao analisar a história do grupo musical Secos & Molhados e seu caráter transgressor a partir do questionamento dos papéis de gênero na sociedade brasileira durante os primeiros anos da década de 1970, nos dá um panorama da ação do Estado, no sentido de coibir as práticas que desestabilizavam a “moral militar” que era social.

2.3 Repressão e conservadorismo: a TFP e outras entidades religiosas em defesa da moral e dos bons costumes.

 

 


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