(Sétima e última parte)
Nesse
trabalho vem sendo ressaltado o “imaginário” anticomunista procurou-se
observar, tanto nas referências historiográficas, como nos documentos
selecionados para este trabalho, que durante a ditadura militar esse anticomunismo
agiu em conjunto com grupos católicos. As Marchas da Família, com Deus, pela
Liberdade, estas eram organizadas por grupos católicos e conservadores
pertencentes à classe média urbana e manifestavam-se a favor dos “tradicionais
valores cristãos, considerados, por eles, ameaçados pela sociedade moderna – o
matrimônio, a família, o terço e o rosário – e condenavam principalmente o
risco do comunismo”.
Essas
marchas desempenharam uma função de “radicalização da censura” com suas
missivas e abaixo-assinados, que tentavam combater a pornografia. Nas cartas
remetidas aos órgãos de censura aparecem diversas organizações religiosas e
algumas pessoas comuns se manifestando junto ao poder público em defesa da
moral e dos bons costumes pedindo mais rigor na censura, esta, ao que parece,
agiu conforme uma demanda de entidades religiosas conservadoras como a TFP.
Fundada e liderada por Plínio Corrêa, a Sociedade Brasileira em Defesa da
Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma das entidades mais conservadores que
promoveu o enfrentamento com a (I)moralidade propagada pelos meios de
comunicação durante a ditadura militar. Visto como uma doutrina filosófica, o
comunismo tinha a Igreja e os preceitos de alguns de seus líderes como fortes
opositores no meio social. Na opinião de Plínio Corrêa, ele seria um “sistema
de crenças que concorria com a religião em termos de oferecer uma explicação
para o mundo e uma escala de valores, ou seja, uma moral. Desse modo, tanto a
“doutrina” como seus defensores estariam minando os princípios das instituições
religiosas, pois a filosofia comunista opunha-se aos postulados básicos do
catolicismo: negava a existência de Deus e professava o materialismo ateu;
propunha a luta de classes violenta em oposição ao amor e à caridades cristãs; pretendia
substituir a moral cristã e destruir a instituição da família, defendia a
igualdade absoluta contra as noções de hierarquia e ordem embasadas em Deus. No
limite, o sucesso da pregação comunista levaria ao desaparecimento da Igreja,
que seria um dos objetivos dos líderes revolucionários.
A
TFP era formada por membros católicos que, com uma militância conservadora,
promovia enfrentamento de outras religiões buscando a sua primazia na
hierarquia e na ordem social. Com uma política de direita, esta entidade
religiosa propunha uma transformação na educação baseada na moralidade
católica. Através de abaixo-assinados e manifestação públicas, a TFP se
propunha a pôr fim ao comunismo, estes agrediam constantemente àqueles que
fossem contrários aos seus ideais.
A
partir dessa conjuntura – a adoção de medidas que podem ser entendidas como um
fundamentalismo religioso -, a TFP participou de vários embates contra a
escritora Cassandra Rios que, para os membros da TFP, era uma das principais
responsáveis pela propagação da luxúria, libertinagem e pornografia.
Corrompendo, assim, a juventude e alienando as mulheres, uma vez que Rios
produzia obras enaltecendo a liberdade sexual das mulheres e, sobretudo,
narrava práticas de homoafetividade.
Os
discursos da TFP contra a Cassandra Rios eram fundamentados a partir da
concepção de família tradicional católica que orientava a instituição, esta
seria um pilar da pátria “saudável”. As mudanças comportamentais da
“modernidade” que eram narradas por Rios trazia a degradação gradual da
sociedade. Com seu radicalismo de extrema direita, a TFP tentava fechar o cerco
aos meios de comunicação que, com a subversão dos valores, através de
representações imorais, ameaçavam o bem-estar da população tornando-os impuros.
153 O
Movimento por um Mundo Cristão (MMC) foi uma espécie de grupo católico ativista
que buscava impor, tal como a TFP, suas representações e práticas religiosas
para uma nova “cristianização”. Conforme Sérgio Rodrigues (2007; PP. 71-72),
ela estava “assegurando a manutenção das feições tradicionalistas do tipo
dominante de catolicismo em Minas”, com “projeto fundamental: uma regulação
religiosa da sociedade global”.
A
TFP, assim como outras entidades religiosas está vinculada à um projeto
político que visa expandir a área de atuação de religiosos, conseguindo adesões
a partir de apelos cristãos e moralistas, ela defendia também os valores
nacionais desenvolvimentistas do Brasil das décadas de 1960 e 1970. No entanto,
a postura da Igreja, intervindo em questões do Estado, não se configura como
uma novidade para o período abordado. Não somente as atitudes e decisões da
Igreja como instituição quase sempre tiveram forte repercussão e capacidade de
influência nas decisões políticas, como também o peso de uma tradição que atravessou
séculos, deixou marcas profundas nos valores e crenças da população de modo
geral (mesmo naqueles que se disseram ou dizem não católicos). Assim, quando,
ao longo de determinadas conjunturas do século XX, a alta hierarquia da Igreja
adotou posturas fortemente contrárias ao comunismo, ela ajudou sobremaneira a
difusão do que se tem chamado de imaginário anticomunista. Aliás, ainda na
segunda metade do século XIX, algumas Cartas Encíclicas já mencionavam o
comunismo como uma ameaça à religião, relacionando-o aos males dos processos de
secularização e laicização modernos.
A
partir da década de 1920, com a expansão do movimento católico, com o fervor
das associações religiosas de leigos, e muito especialmente das Congregações
Marianas, surgiram críticas com relação quase que inexistência de uma frente
católica no cenário político. Durante as eleições para a Constituinte Federal
de 3 de maio de 1933, a Liga Eleitoral Católica recebe destaque sua maioria,
onde concorreram antigos Partidos remanescentes da República Velha, ao lado de
agremiações políticas e sociais surgidas após a Revolução de 1930. A atuação da
Liga Eleitoral Católica, instituída em fins de 1932, apresentava aos vários
Partidos um programa católico mínimo, cujos tópicos cada candidato deveria se
comprometer por escrito a respeitar caso fosse eleito. A LEC conseguiu eleger
deputados em todo o país. Teve como deputado mais votado Plínio Corrêa de
Oliveira que, em São Paulo, onde foi eleito, com 24.017 votos, o jovem líder
católico que já desempenhara papel de grande importância nas conversações para
a fundação da LEC.
Informações disponíveis em:
http://www. pliniocorreadeoliveira.info/MAN_19330115_LEC.htm. Acessado em: 31
de ago 2022
Com
dificuldade para conter os avanços no comportamento e nas formas de
representação – na música, no teatro, no cinema e na literatura, mais do que
uma “associação imaginária” entre questões morais e políticas, não podemos
destacar a “instrumentalização” do político por parte desses setores moralmente
mais conservadores da sociedade. O mesmo raciocínio pode ser empregado na
inversão do problema: alguns agrupamentos mais à direita do “espectro político”
também usaram, em muitos de seus discursos, preocupações mais restritas ao
plano comportamental como um recurso para o fortalecimento de seu ponto de
vista ideológico.
A
partir da década de 1970, jornais e revistas começam circular direcionados ao
público gay. Com a “revolução dos costumes”, antigas identidades de gênero
começam a se diluir, o “desvio” do comportamento sexual passa a ser abordado de
forma ampla nas revistas como Ele &
Ela e Status que tentam
problematizar a sexualidade masculina e o comportamento do “homem moderno”.
Tais questões, entretanto, não se radicalizaram até surgir, no discurso da
revista [Ele & Ela], o movimento gay, ou gay Power – ao qual a revista se
referia como “poder alegre”, causou um impacto na hegemonia da masculinidade
tradicional. Mas, ao contrário do feminismo – tratado como uma curiosidade -, a
homossexualidade e qualquer expressão sua nunca teve aceitação na revista,
sendo invariavelmente tachada de “desvio” e de “doença”.
Desse
modo, o serviço de censura remetia a questão da homossexualidade à seara dos
temas imorais, portanto, passível de um rigoroso no controle do assunto, visto
que, tal prática seria mais danosa à sociedade que a tal liberdade sexual
feminina, contanto que esta fosse heterossexual.
Escritos
polifônicos e ambíguos
Cada um de nós é um símbolo
que lida com símbolos – tudo ponto apenas e referência ao real. Procuramos desesperadamente
encontrar uma identidade própria e a identidade do real. 165
165
Clarice Lispector, Água Viva (1973; p. 80)
Engraçado o mundo! A
sociedade! O homem! A mulher! E ela: a lésbica! Enfim, o convencimento, a
segurança, a certeza para a definição da personalidade estabelecida, do
caráter, da moral e do que ela era: Homossexual! 166
166
Cassandra Rios, Mutreta (1972; p. 27)
3.1 “Que mal eu fiz a esses
senhores, tão respeitáveis?”
[...] não existem estranhos
afetos, existem pessoas estranhas que estranham, não entendem, não aceitam ou
disfarçam. 167
167
Idem, Censura, minha luta, meu amor (1977, p. 121)
Como
questão central de diversas querelas políticas associadas à intelectualidade, a
pornografia, provavelmente por conta do “surto censório” do governo Geisel
(1974-1979), parece assustar menos que as possibilidades plenas da vivência de
novos sujeitos politicamente ativos e que vivenciam de modo diverso suas
experiências de sociabilidade e também o deleite dos prazeres “pervertidos”.
Ampliando a voz de minorias como as lésbicas e os homossexuais, Cassandra Rios
descreveu tão bem essas experiências em sua escrita que, por vezes, houve a
confusão desse universo ficcional com as práticas reais. Cassandra Rios teve a
sua narrativa ficcional confundida com sua vida privada e no livro Censura...(1977; pp. 103-104), conta que
motivada pela associação de sua escrita com a subcultura e sua classificação
como escritora menor, lança mão da composição “inflamada de revolta e
inspiração” do livro O bruxo espanhol,
ao que quando intimada a depor numa delegacia “descobriu que conseguira
transformar coisas irreais em assuntos polêmicos”
Olhos
fitos no rosto do homem que a interrogava, Cassandra sentiu um frio de faca
cortá-la por dentro, rasgar-lhe o cérebro como se fosse inútil qualquer
resposta para explicar que tudo era fruto de sua imaginação e que somente
quisera provar seu valor de ficcionista, sua capacidade de inventar estórias.
[...] Remontara-se [sua narrativa] a uma época perdida no passado, inutilmente,
erguera uma cidade, inutilmente, queriam o endereço da moça cujos olhos
brilhavam no escuro como os olhos dos gatos, dos bichos pela incidência da luz
[...] – Está bem, não precisa responder.
A
investigação das fontes literárias tem auxiliado há muito os historiadores, uma
vez que a narratividade implica em dispor de estruturas e/ou esquemas
explicativos com o intuito de construir representações sobre o passado. Assim,
as obras ou algumas delas se apropriam dos objetos e das práticas da cultura
escrita do seu tempo para transformá-los em recursos estéticos movidos por fins
poéticos, dramáticos ou narrativos. A literatura se aproxima da história e
torna-se uma preciosa fonte de pesquisa, porquanto, ela se apodera não só do
passado, mas também dos documentos e das técnicas encarregados de manifestar a
condição de conhecimento disciplina histórica.
Com
uma escrita diretamente relacionada com a interdição de sua produção literária,
a obra Censura, minha luta, meu amor
(1977), Cassandra Rios elenca as obras que foram censuradas e nos conta o que,
para ela, causou sua interdição. Fugindo aos mecanismos de disciplina, com
táticas de representar as práticas pelas quais as pessoas poderiam se
reapropriar do espaço, dos afetos, dos prazeres sexuais, Cassandra Rios incomodava
o Estado, os setores – e alguns representantes – conservadores por enfatizar
que o poder de controle deste se exercia através da ordem discursiva. Com suas
narrativas, ela oferecia a possibilidade para que os sujeitos e os prazeres
desviantes se insurgissem contra a ordem estabelecida. Essa postura, por vezes
velada, a transformou na escritora maldita que vendia milhões de livros sem
obter reconhecimento da crítica literária.
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