Antigo exemplar do período medieval
Por
pertencer ao universo dos malditos franceses, Aloysius Bertrand é pouco
comentado, mas legou à posteridade uma obra ao mesmo tempo simbólica e
inquietante. E essa marca pode, em parte, ser decifrada: ele deriva da
influência de Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Breton e Mallarmé, que resulta
no amálgama de Gaspard de La Nuit
(Fantasias à Maneira de Rembrandt e de Callot, tradução de José Jeronymo
Rivera, pela Thesaurus Editora, Brasília, com 215 páginas.) deliciando-se com
as nuanças lascivas ou provocantes de algumas fantasias do livro, reeditado e
analisado na França, lido e traduzido em outras partes.
Louve-se com entusiasmo o tradutor,
José Jeronymo Rivera, pelo árduo e arrojado trabalho de transpor a vivência e a
técnica bertrandianas. Tarefa que só um artista pode executar e aqui conduzida
com muita sensibilidade. Percorrendo sua versão, o leitor brasileiro sentirá
ecoar em nosso idioma o ritmo regular e a fechada prosa poética do original.
Pelo que se lê no prefácio, Gaspard de La
Nuit desde o começo, uma obra rara, acessível apenas a poucos literatos,
entre eles, Charles Baudelaire que admitiu ter lido pelo menos vinte vezes numa
confissão que fez em Le Spleen de Paris,
mas conhecido por Pequenos Poemas em Prosa, no Brasil. Tanto no “Gaspard” e na
“Peças Soltas”, seções que compõem o livro, a par da novidade da forma fixa (o
poema em prosa), técnica e estilo apontam para o clássico na forma, o
realístico no tema. São 65 unidades poéticas, com ilustrações de Rembrandt e
Callot, acompanhadas de uma cronologia breve da vida de Bertrand.
Suas histórias reassumem a Idade
Média, embora tenham sido escritas no começo do Oitocentos – as falas dos
personagens são de duzentos ou trezentos anos, antes, à época das novelas de
cavalaria, que o autor queria ridicularizar – e, afinal, conseguiu o seu
intento – porque já eram anacrônicas. Em seus poemas em prosa, Bertrand não
estava preocupado apenas com reis, rainhas, princesas e castelos, forte
característica da época na qual situou os seus personagens, um tempo em que a
lírica trovadoresca ainda não havia sido substituída de vez pelo classicismo.
Por isso, o leve tom retrata um certo medievalismo romântico que vem da plebe,
até porque no tempo em que viveu Bertrand os costumes pré-Revolução Francesa e,
até mesmo, os valores medievais ainda não se haviam dissipado por completo.
Bertrand mostra a sua face de
filósofo que sabe retratar a época de profunda devassidão nos costumes
políticos e sociais, e antevê o imenso poder concentrado nas mãos dos
jornalistas (ou dos donos de jornais), e, com seus quadros realistas, diz na
página final de Gaspard: (...) Não, a Glória, nobreza cujos brasões não se
venderam jamais, não é o sabonete do vilão, que se compra por preço de tabela
na botica de um jornalista! Mais adiante, questiona a fragilidade do homem
diante do destino, ao compor uma frase que é também a síntese de sua visão de
mundo: Ah! O homem – diz-me, se o sabes
– o homem, frágil joguete a cabriolar suspenso nos fios da paixão, não será ele
apenas um boneco com o qual brinca a vida e a quem a morte destrói? Ler
este livro de Aloysius Bertrand é entender um pouco não só da França medieval,
mas também compreender a do século 19 em que o exemplo de Napoleão Bonaparte estimulou
muita gente medíocre a pretender ir além das próprias pernas.
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