“Relações que hoje são
tachadas de escravistas podem, na verdade,
ser piores do que certos
modelos que vigoraram na escravidão”
Nunca é demais repetir: O Brasil é um
país criado na concepção de que trabalho é escravidão, portanto, liberdade é
não-trabalho. Nosso País teve três séculos e meio de regime escravocrata contra
apenas um de trabalho livre. Três e meio para um! Ao longo desses séculos importou
4 milhões de negros africanos, 40% das importações totais das Américas, numa
das mais volumosas operações de transferência forçada de pessoas havidas na
história. Este é um país formado na concepção de que trabalho é algo que se
obriga outro a fazer e pessoas humanas são mercadorias.
Que significa para o Brasil, hoje, ter
tido escravos? Não acho que todos os problemas brasileiros, inclusive de
relações entre classes, tenham a ver com a escravidão. Mas, o fato é que
tivemos quase 500 anos de história em que os mais afortunados se acostumaram à
noção de que os outros podem ser torturados. Isso pesa. A escravidão não dizia
respeito apenas ao escravo e ao senhor. Ela gangrenava a sociedade toda, e
criou um padrão de relações sociais e de trato político que deixou consequências
graves. A escravidão foi a base a partir da qual se fundou uma civilização
brasileira. E ao fazê-lo, viabilizou um projeto excludente, cujo objetivo das
elites é manter a diferença em relação ao restante da população. É comum ouvir
falar hoje em relações escravistas ou semiescravistas no campo. Ora, relações
que hoje são tachadas de escravistas podem, na verdade, ser piores do que
certos modelos que vigoraram na escravidão.
Este sistema legou-nos uma
insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da
estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só
para elas, onde a segurança está privatizada, a escola idem e a saúde, também.
Falar de legado da escravidão, agora, no Brasil, é falar da pobreza. Da
miséria. Ou, para usar uma palavra mais atual – e apropriada -, da exclusão.
Nem tudo tem a ver com a escravidão. Isso é simplismo. Também, não somos
iguaizinhos ao que éramos na época da Colônia e do Império. Isso é mais
simplismo ainda. Mas, pode ser útil, para entender o Brasil do presente,
acompanhar o raciocínio de que o tráfico de negros foi o maior negócio de
importação brasileiro até 1850. Comprar pessoas para estabelecer diferenças foi
o principal empreendimento deste País.
O sonho americano, como lembrou a
revista The New Yorker, era uma
sociedade democrática e igual. Já o projeto brasileiro é uma sociedade de
diferentes. Os poderosos precisam ter quem se situe embaixo para se sentir mais
poderosos e livres. O sonho democrático americano é embaralhado e atazanado
pela existência dos escravos. Já o projeto brasileiro é por eles completado e
viabilizado. O projeto brasileiro é arcaico e arcaizante, mas atenção: é
exitoso. Historiadores revelam um escravo que reunia na mesma pessoa o
acomodado e o insubmisso. Só que o êxito tem um preço. Uma parte desse preço é
aquele medo que se apossou de Vassouras, depois da fuga da escravaria da
fazenda Freguesia, ou de Salvador e um pouco por toda parte no Império, depois
da Revolta dos Malês, e que foi num crescendo, pois às vésperas da abolição era
um sentimento generalizado. É simplismo pensar que somos iguais ao que fomos,
mas, sem esquerdismos nem populismos, talvez não seja absurdo pensar que o medo
é feito do mesmo material daquele que ocorre ao percorrer hoje as ruas de
Presidente Prudente, São Paulo e Rio de Janeiro, à noite.
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