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Oswald: Usina e Zona





Uma das últimas imagens de Oswald de Andrade (1954)











Queria que 22 fosse um movimento constante,
que se mantivesse enquanto espírito









            De personalidade complexa, de temperamento inconformista e irreverente, a vida de Oswald de Andrade foi tão rica de acontecimentos, quanto sua obra de talento e invenção. Em vida, logrou uma quantidade de inimigos, mas não o reconhecimento de sua produção. Seus últimos momentos, inclusive, foram de extrema solidão estética e moral: para os companheiros de geração ele não passou de uma blague, capaz de sacrificar uma amizade antiga por uma anedota, no caso, a famosa briga com Mário de Andrade por tê-lo chamado de “o Miss São Paulo”, em artigo. Seu nome foi praticamente excluído do mercado editorial.
            O escritor, um dia desacreditado, afirmou: “considero minha obra acima da compreensão brasileira”. Jamais imaginou que ela seria a ponta de lança dos movimentos de vanguarda dos anos sessenta, na música, no teatro e na literatura, fascinando a todos que dela se aproximavam e que hoje começa a se evidenciar para as novas gerações. Enquanto muitos de seus contemporâneos respeitados no período agora estão esquecidos, Oswald é do nosso tempo.
            Acho que no momento da morte Oswald de Andrade estava começando a viver de um modo diferente para a imaginação do tempo. Já tinha passado o guerrilheiro brilhante e renovador dos anos 20. Ultrapassado o militante político dos anos 30 e começo dos 40. Estava presente para todos o final visionário dos últimos anos de sua vida – de quem estava de certo modo contornando a literatura e a política para encontrar uma fórmula revolucionária a favor da conduta humana harmoniosa e liberta. Mas, ainda não se havia compreendido o trabalho real da sua obra.
            A figura de Oswald é extremamente importante na história do modernismo brasileiro. Foi um agitador de ideias e o responsável pelos movimentos que deram vida às letras do decênio de 20: o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico. Também chamou a atenção para a temática brasileira e a pesquisa vocabular estética, com seu romance “Memórias Sentimentais de João Miramar”.
            Oswald queria que 22 fosse um movimento constante, que se mantivesse enquanto espírito, e de certo modo conseguiu isso, porque a partir da Semana, todos os movimentos literários que surgiram, quando não eram parte do modernismo, valem-se de princípios e conceitos modernistas. Ele conseguiu isso porque a experiência estética continua até hoje.
            No fim da vida, Oswald de Andrade procurou erigir a Antropofagia numa concepção geral da existência, só que ela é fruto do Pau-Brasil, como todo o pensamento oswaldiano posterior. Não só o seu pensamento, como todos os outros que houve na Semana e depois haveriam de surgir. Sem o movimento Pau-Brasil não haveria nada na literatura atual.
            Os últimos trabalhos de Oswald de Andrade como “Ponta de Lança”, relançado pela Editora Globo, com 208 páginas, “Telefonema” e o inacabado “Um Homem sem Profissão” – Sob Ordens de Mamãe”, comprovam o raciocínio: é política e poética. Politicamente, enquanto o Brasil se mantiver neocolônia, a síntese antropofágica de Oswald é insuperável. Só será superada quando nossas relações de neocolônia o forem. Agora, poeticamente, sua obra será sempre o eterno presente.





Oswald Geleia Tropical






Oswald, o homem que come
agitando seus panfletos do caos
fulgurações, de intuições descontínuas
marco zero da tropicália urbana,
floresta entrançada da pauliceia ilhada,
rica de seivas, cheia de cipós de plásticos encapados,
de ramos entrelaçados bits, bites
com Eros escancarado, guerrilheiro canibal
de viril Pau Brasil nu com a alma da poesia
carnavalista de vida do corso pede passagem
no desfile divisor das águas dos movimentos
alegria alegoria da geleia rococó das máscaras.


Oswald desfolha a bandeira do estrangeiro conquistador,
lança-chamas, incendiário da burguesia
perfeito cozinheiro das almas catequistas do poder
em nome do desejo fechado da catedral
do Bispo Sardinha cozido no caldeirão,
evangelho do dirigismo cristão escravo
guilhotinou a sabedoria dos povos das florestas,
dos elementais das matas, folhas
ressecadas pelo Patriarcado e a servidão
impondo o código da culpa em comer o pão
e beber o vinho,
de bem-viver do trabalho, a paranoia de vagamundo./
Oswald, secretário da amante,
saboreia o manjar dos deuses,
na fogosa fornalha de Miss Ciclone.


Oswald, o homem que come a carne da palavra,
arcada língua portuguesa vigiada dos mil olhos
dos desencontros acadêmicos, do museu
medieval das senhoras católicas
rompe o lacre de professoras, pintoras e jornalistas,
filhas de Maria das mentiras do labirinto de gretas,
julgado sem defesa no tribunal dos juízes da moral
pelos seus maus hábitos de monge que não lambe
as solas sádicas das gigantes botas do poder.
Oswald estripas as vísceras do velho porco
que chafurda a borra do veneno da falsa moral
enlatada do manual de ajuda,
na prateleira do supermercado desejo
vazio que liquida ação em pó do deserto
cinza dos tártaros.


O menino sentimental das travessuras que fez,
mirava os seres tiranos, pastores leigos,
camelôs da autoajuda, cowboys virtuais,
em paralelo aos tubarões da noite.
Era capaz de destruir um afeto por causa
de um gracejo mordaz, ferino riso do dragão,
catapulta de bolas de fogo lançadas
sem alvo, sem direção que explodem.
Sim, esta é a vida do homem Oswald
Andrade espírito do País do carnaval:
- Viva a Oswald! Vida (à)vida!





Rubens Shirassu Júnior







(Páginas 75 e 76, Cobra de Vidro, 82 páginas, poemas, apoio: ProAc – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura e Governo do Estado de São Paulo, 2012.)








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