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Na Vitrine da Óptica












“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada , gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.”



( Os Homens Ocos, de T. S. Eliot )










            Um facho de luz branca iluminou a placa da loja. Duas pessoas da frente aceleraram os passos temendo que o sinal luminoso causasse alguma coisa. Na escada rolante, as figuras pareciam formigas que modelavam o desenho turvo de um imenso formigueiro humano. A gente que esperava começou a atravessar os corredores trombando com outros transeuntes.
            As vitrines refletem o ajuntamento de pessoas que formou-se nas passagens, gradativamente, os elementos da imagem começam a mostrar tons de cinza, as sombras vão aumentando até formar um quadro negro. O ambiente daquele espaço tornou-se trevas, uma sensação de branco na mente. Caio vira a cabeça de um lado para o outro, emite um grito, um grito que se espalha por todos os cantos, enfim, consegue tocar a vitrine lotada de modelos de óculos para todos os tipos de rostos, pela profundidade do sulco, percebe-se que repetiu duas palavras, assim realmente fica a saber quando alguém quebra violentamente o espelho de uma loja de roupas, enfim, um berro ensurdecedor: - Que horror, estou sem rosto.
            Ninguém o diria. Num movimento rápido, punhos fechados de Caio, como se ele quisesse destruir no interior do cérebro a última imagem recolhida dos seus olhos castanhos escuros, como duas amêndoas, pousadas no veludo branco da caixa disposta no expositor. Estou sem rosto, estou sem cara, repetia com desespero enquanto o ajudavam a tirar as mãos cortadas e ensanguentadas em meio aos cacos de vidro, que caíam formando um mosaico no cinza chumbo do piso. As lágrimas rompendo, tornaram a face mais semelhante ao mármore das estátuas gregas que vira nos filmes épicos da televisão. Ele dizia estar morto. Alguns espectadores curiosos aproximavam-se do grupo, e as pessoas lá de trás, que não sabiam o que estava acontecendo, protestavam e rogavam a presença de policiais contra a exposição e o constrangimento de uma pessoa sem face, olhos, nariz, boca, um fato incomum, tudo o que justificasse o alvoroço, o alarido de vozes e o amontoado de pessoas curiosas e perplexas. Chamem a polícia, o bombeiro sei lá, o “Pronto-Socorro” gritavam, tira daí essa coisa! O homem sem rosto implorava, por favor, alguém que me leve para casa. O homem sem face só pedia que o encaminhassem até a porta da residência onde morava. Fica um pouco distante do shopping, seria um grande favor que lhe faziam. E o carro dele, perguntou uma voz. Outra voz respondeu que não tinha nem chave e veículo. Mas acompanho este senhor à sua casa. Venha, venha comigo, dizia-lhe a mesma voz. Ajudaram-no a sentar no lugar ao lado do condutor, puseram-lhe o cinto de segurança. Não vejo o meu rosto, com que cara ficarei diante de minha família? Diga-me onde mora, pediu o senhor de meia idade. O homem ergueu as mãos diante dos sulcos onde ficavam os seus olhos, esfregou os dedos. Nada, como se estivesse neve, é como se tivesse caído num mar de gelo, sentiu doer latejando nos nervos o frio intenso que percorria as suas veias de medo, vazio e desespero ao fitar a face ovalada e branca na vitrine da óptica no strip do shopping Center...






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