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A Entrevista









Um dia arrancaram meu crachá vermelho, exigiram o uniforme azul escuro,
pediram devolução das placas
com os números que me identificavam
e me tornaram gente dentro da indústria.











            Parece que me esqueci de ser gente. Há tempo não tenho atitudes normais. Não rio, nem entristeço, mas, sofro abalos, emoções. Como se eu fosse um pântano, onde as coisas caem e morrem. Areia movediça, imóvel aparentemente e destruidora. Tudo o que é vivo e entra em mim, morre. Não é nada agradável descobrir isto. Eu tinha momentos de depressão, mas costumava ser alegre, irônico e sarcástico. A turma gostava de mim porque era capaz de dizer a frase certa e engraçada, na hora exata. Não que fosse o palhaço da turma. Era um espírito crítico, suficiente para encarar as situações com uma ironia saudável, a única forma de enfrentar o mundo sem ser levado à loucura. Agora, minha boca endureceu, os músculos não se movem. Simplesmente porque não tenho vontade. E quando a vontade está se extinguindo é perigoso. Eu preciso encontrar amigos, mas as pessoas se afastam, como se fugissem de bêbado e mendigo. Pode ser que eu cheire muito a passado ou que a greve tenha me marcado. Não sou um velho, tenho cinquenta anos,  não é nada e, ao mesmo tempo, é tudo. É tudo se a gente se preocupa e faz um balanço diário. E não é nada se a gente se comporta como se estivesse se iniciando. Na verdade, estou sempre iniciando e é o que me mantém novo. Está chegando o tempo em que não sei mais o que começar. Um tempo em que vejo a coisa de fora para dentro. Outro dia, preenchi uma ficha de um emprego numa loja de departamentos. Uma empresa enorme que está abrindo uma nova agência.



            - Cinquenta anos?
            - Cinquenta.
            - Se quiser, continue. Mas nem vai adiantar. Com essa idade.
            - O que tem a idade? O anúncio não dizia nada.
            - Não tem nada. Só que não vão te escolher. Aliás, nem posso deixar o senhor continuar a preencher.
            Recolheu o impresso­ e ficou olhando para mim com um rosto impassível. Aquele molequinho que eu não conhecia. Vindo de fora. Um merdinha.
            - Tenho cinquenta anos e tanta capacidade como um de vinte e cinco.
            Eu disse, nem acreditando em mim, sabendo que não adiantava. Além disso, a frase era completamente boba e sem sentido, um chavão repetido. No entanto, eu estava disposto a encher. Não ia ter o emprego, podia perder tempo e fazer a empresa perder o dela. O meu não custava nada e dela era precioso, como diria o meu entrevistador.
            - Posso tentar, ao menos?
            - Não adianta.
            - Se você deixasse passar uma ficha...
            - Você, não! Senhor. Eu não te conheço.
            - Quero terminar minha ficha.
            - Não vão te escolher.
            - Tenho direito de tentar.
            - E eu tenho ordens de não deixar passar.
            - Vamos falar com quem deu essa ordem. É institucional.
            - Não sei se é ou não inconstitucional.
            - Chame o chefe, quero falar com ele.
            - Não há nenhum. Ficaram em São Paulo. Vim na frente para selecionar.
            - Então, telefona. Que eu espero. Um há de vir.
            - Telefonar para São Paulo e esperar um deles vir até aqui?
            - Não saio desta cadeira, enquanto não conversar com um chefe.
            - O senhor vai me dar licença. Tenho um mundo de gente para entrevistar.
            - Só depois de me atender.
            - Já atendi.
            - Ainda não. Vou esperar.
            - Acabou. O senhor não sai, saio eu.
            - Pois saia.



            Saiu. Fiquei sentado na cadeira. Até cinco e meia, quando um homem, que eu nunca tinha visto da cidade, veio fechar a porta.
            No dia seguinte, eu era o primeiro da fila. Havia dez atrás de mim. Entrei logo e sentei, o merdinha não tinha chegado. Fiquei lendo o jornal. Quando baixei o jornal, ele estava lá. Cara de desagrado.
            - Não temos mais o que falar.
            - Quero ser entrevistado, fichado, concorrer ao emprego.
            - Saia, que este é um recinto da companhia. Tenho o direito de colocá-lo daqui para fora.
            - Eu é que vou chamar a Polícia. Então, a sua companhia não admite velhos. Vou aos jornais, faço um escândalo, provoco uma intervenção.
            - Com que provas o senhor diz isso? Nenhuma. Depois processamos o senhor por calúnia. O senhor simplesmente não conseguiu o emprego porque é atrevido. Porém, vamos mostrar que não preencheu os requisitos na entrevista. Saia.
            - Saia você da minha cidade.
            - Mais uma chance, moço. O senhor me irritou.
            - Eu é que irritei? Você me recusa o emprego por ter cinquenta anos. Vem de fora para podar a gente daqui. Prejudicar as pessoas da terra, isso é que é. Pois saiba que estamos cheios. Há muita gente entrando pela porta da cozinha nesta cidade. E você é um deles.
            - Que história é essa?
            - As pessoas de fora são indesejáveis aqui!
            - Mesmo as que, como nós, estão trazendo empregos?
            - Emprego! Que emprego? Acaba de me rejeitar.
            - Eu não. A companhia.
            - É a mesma coisa.
            - Não é, não. Olhe aqui. Nesta cidade não havia nada até a gente aparecer. Sabe quantas vagas vamos ter? Mil e duzentas. Atrás de nós sabe quantas empresas virão? Dezenas. A região é importante. Vai haver emprego às pampas. E vocês reclamam. Nunca vi gente pior. Daqui para a frente as pessoas não precisam sair daqui para fazer a vida fora.
            - Que bom. A sua companhia chegou e resolveu o problema social: o desemprego na região. O que está pensando?
            - Qual é a sua, moço?
            - Vim zelar.
            - Zelar?
            - Zelar, zelar, zelar.



            Estou na pior, mas tive um emprego razoável, um dia. Não suportei. Foi logo depois da fábrica de extrato de tomate. Era um mero parafuso diante de uma grande máquina. Simplesmente, não consegui aguentar aquilo. Vestia um uniforme azul escuro, todos os dias ser chamado por um número, sentar-me num cubículo. Estávamos todos confinados. Lá dentro, tentei escrever as minhas coisas. Proibiam. Retiravam os meus papéis, computador, lápis, caneta, tudo. Um dia arrancaram meu crachá vermelho, exigiram o uniforme azul escuro, pediram devolução das placas com os números que me identificavam e me tornaram gente dentro da indústria. Colocado para fora. Sem o número, readquiri o meu nome. Qual era?





( Este conto faz parte da seleta "VII CLIPP" - Concurso Literário de Presidente Prudente - lançada em 27 de outubro de 2013, no 4º Salão do Livro, Centro de Eventos IBC. )




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